segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Descentralização dos museus do Estado? Uma errónea equação!


Transferir para os órgãos municipais a competência de gerir, valorizar e conservar os museus (do Estado) que não sejam museus nacionais, como estabelece  a alínea b) do artigo 15º da Lei de Descentralização, é por mim considerado como um dos mais graves atentados aos ideais republicanos, para a área da cultura e dos museus, de que há memória em Portugal.

I – O erro histórico.


Desde logo porque estas entidades museológicas foram criadas pelos Governos da 1ª República (entre 1912 e 1924) para se constituírem como um conjunto de instituições culturais significativas, tanto quanto possível localizadas no todo do território nacional (entenda-se equilibradamente distribuídas pelas regiões portuguesas que, no seu conjunto, dão/dariam corpo e expressão ao sentido identitário nacional), de uma forma estruturada e que se pretendia exemplar, enquanto símbolos maiores do nosso património artístico e histórico. Tudo resultando em somatório lógico de parcelas do que de melhor se produziu e coleccionou ao longo dos tempos, em cada região do país (daí a designação de museus regionais para muitos deles, no início e desenvolvimento deste processo constitutivo, à falta de melhor designação).

A ideia era a de criar infra-estruturas que validassem uma política global para a salvaguarda e valorização do património cultural do país (e até para a “educação” do povo), o que só se conseguiria alcançar mantendo-as na esfera da administração central, num modelo orgânico e funcional de rede, como hoje diríamos, para assim dar substância a uma tessitura de museus portugueses, à escala do território nacional, e submetidos a uma hierarquia operativa que ajudasse ao cumprimento missionário que lhes cabe realizar.

É claro que poderíamos aprofundar todo o processo histórico que levou à criação de 13 museus no período acima considerado, e entre todos eles, 7 possuírem estatuto ligado à administração central (Aveiro, Évora, Faro, Bragança, Viseu, Lamego e Tomar), 2 ficarem sob a responsabilidade tutelar das respectivas Juntas Gerais do Distrito (Beja e Vila Real), e 4 pelas respectivas Câmara Municipais (Leiria, Braga, Abrantes e Chaves). Não o faremos aqui, porque não cabe neste breve considerando tal abordagem mas sublinharia desde já a clarividência dos então responsáveis públicos, que souberam estruturar as tutelas destas unidades museológicas muito em função da qualidade intrínseca dos seus acervos, sem prejuízo de outros fenómenos de natureza mais política que contribuíram para esta estratificação institucional. Ficará para outra altura, havendo necessidade de maior clarificação. 


II – Descentralização ou demissão?


No meu entender, uma verdadeira descentralização seria conseguida através da disponibilização, às equipas directivas e de pessoal de cada museu, de um conjunto de competências e capacidades gestionárias que lhes permitissem actuar em conformidade com as realidades e necessidades específicas de cada um, mas sempre em respeito e em articulação com as políticas culturais nacionais que fossem estabelecidas para o sector, e sempre também submetido à orientação superior de quem tem mandato democrático para, a cada momento, definir as linhas gerais das políticas culturais.

Assim sendo, considero que está muito mais próximo do conceito de uma verdadeira descentralização a recente proposta de autonomia dos museus, monumentos, palácios e sítios (com todos os defeitos que já enunciei num outro texto), que este lacónico articulado legal, que ainda por cima nos remete para acordos com cada município a propósito da  possibilidade de transferir as competências gestionárias dos museus em causa. Parece querer dizer que, se der, deu, se não der, paciência... que logo mais se verá como vai ser, o que levanta questões até de natureza constitucional, como alguns senhores deputados (Paulo Trigo Pereira, independente pelo PS, entre outros) já levantaram, e muito bem.

Ora, em modesto entender, isto não é descentralização. É demissão do Estado, pura e simples, ao alijar as suas mais nobres e elevadas funções constitucionais de zelar pelo património artístico e histórico nacional, transferindo-as para a esfera tutelar municipal, o que reduzirá drasticamente o alcance da missão de cada entidade transferida, por muito que nos garantam que não. Desde logo porque cria desequilíbrios muito maiores do que os existentes, já que cada museu transferido passará a depender mais da boa ou má vontade e predisposição natural dos responsáveis autárquicos e das suas agendas de política local, bem como da capacidade financeira da autarquia em causa. E sabemos o quão diversa é a realidade financeira, e de sensibilidade para as “coisas da cultura”, das nossas autarquias... É claro que argumentarão sempre com o acompanhamento da transferência com um envelope financeiro adequado à realidade museológica em causa, e o estabelecimento de regras específicas, devidamente contratualizadas, para zelar pelas boas práticas museológicas das entidades transferidas. Mas isso é completamente enganoso e erróneo, porque apenas poderá ter força legal durante a vigência do mandato político das partes contratantes, já que a partir daí a autonomia democrática dos órgãos de soberania não possui mecanismos impositivos capazes de contrariar o livre arbítrio e poder decisório da autarquia, em matéria de gestão dos seus próprios recursos e equipamentos, como passariam (e passam) a ser estes museus. E ainda bem que assim é, senão estaríamos a condicionar a liberdade democrática do poder local, e isso seria péssimo para o regime.

Portanto, fazer depender dos municípios os valores culturais e patrimoniais que são de inequívoca importância nacional, deixando-os sujeitos a uma agenda cultural obrigatoriamente localizada (por interesses que a própria definição legal sufraga, em respeito pela independência e não ingerência dos diferentes órgãos de soberania) num qualquer território concelhio, é um caminho ínvio que dificilmente subscreverei.

Depois, porque as próprias colecções, sendo de âmbito e valia nacional, passam a ser geridas por entidade políticas cuja visão missionária se concentra totalmente na área geográfica que serve, sem prejuízo de existirem autarquias que sabem ultrapassar essa visão paroquial do património que possuem no seu território e imprimem dinâmicas supra municipais aos seus equipamentos culturais, e em particular aos museológicos. São os raros, raríssimos, exemplos de excepção que apenas me confirmam a regra...

Devo aqui ressalvar que não considero apenas os museus com designação “Nacional” como sendo os únicos detentores de acervos com valia homónima. Museus como o de Lamego e o de Aveiro, para dar apenas dois exemplos paradigmáticos, possuem acervos de incontornável valia nacional cuja passagem para a gestão autárquica, eventual ou real, constitui inquestionável empobrecimento estatutário.


III – A César o que é de César...


Temos de ser claros e incisivos nesta matéria – os museus municipais são insubstituíveis e fundamentais para uma harmoniosa organização do panorama museológico nacional. Importantíssimos instrumentos de cultura, ao serviço das comunidades onde estão inseridos, e dos públicos em geral, alguns mesmo reconhecidos internacionalmente, quer pelos conteúdos que expõem, quer pelas boas práticas museológicas que desenvolvem; mas não podem nem devem, no entanto, ser confundidos nos respectivos papéis com os outros museus, nomeadamente com os museus que possuem acervos supra municipais, uma vez que cada tipologia cumpre (ou deveria cumprir) a especial missão e desiderato para que foram criados. Aos municípios o que é dos municípios e à administração central o que dela deve ser, cada qual mantendo e respeitando as suas origens históricas tutelares, para cabal cumprimento das suas obrigações institucionais, e até mesmo constitucionais.

É para mim muito claro que os museus do Estado devem sempre, e em todas as circunstâncias, manter relações institucionais, e até mesmo programáticas, com os municípios onde estão localizados, do mesmo modo que aos museus municipais se espera e deseja uma boa articulação com os serviços e estruturas públicas de serviço cultural central, de que o projecto da Rede Portuguesa de Museus deveria ser pólo aglutinador de referência.

Significa isto que os museus criados pelos municípios cumprem o desiderato para que foram criados, do mesmo modo que os museus criados por razões diversas se devem manter nas respectivas esferas tutelares, porque só assim são capazes, todos, de responder positivamente perante as suas obrigações de serviço público cultural. Naturalmente que aqui me estou a referir aos museus tutelados por entidades da esfera pública, e não outras.

A cada um, consoante a natureza histórica, fundacional, patrimonial e simbólica que esteve na sua constituição e criação, se deve dar a relevância e importância devidas, sejam museus tutelados pelas autarquias, sejam tutelados pelo Governo da República. O que não se pode, ou não se deve fazer, é adulterar profundamente o seu sentido primordial de existência, a pretexto de uma qualquer necessidade conjuntural, por mais exigentes que sejam essas necessidades e, com tais argumentos, subverter definitiva e irremediavelmente o primordial papel “ideológico” para e porque foram criados.

IV – À espera da regionalização.


É claro que num mundo quase perfeito de um Portugal regionalizado, teríamos os museus públicos portugueses estruturados em nacionais, regionais e locais, cada qual sob a esfera tutelar das administrações homólogas, numa hierarquia de valor em função da qualidade dos acervos e da vocação específica de cada instituição. Não havendo regionalização do país, o pior que poderia ser agora feito, mesmo para os museus públicos passíveis de serem transferidos para a esfera regional, é transferi-los acriticamente para a esfera local, como se ambos os níveis de administração fossem, mais coisa menos coisa, o mesmo. Mas não são, e não faz qualquer sentido fazê-lo, porque isso retira estatuto ao museu e, pior que isso, deturpa totalmente o sentido missionário original que possuía até ao momento da transferência.

Simbolicamente, produz o efeito geral (que até pode ser aparente, mas é sempre desastroso), de desqualificação do próprio acervo, por enquadramento mental de que quanto mais elevado for o estatuto da entidade, mais importante é o seu valor e, por conseguinte, mais qualificado é o território e a comunidade que orgulhosamente o possui (e, confesso, não considero que seja mau pensar que assim se pense).

Também por estas razões não faz qualquer sentido o articulado legal da alínea precedente, que considera ser da competência dos órgãos municipais a gestão, valorização e conservação do património cultural que, sendo classificado, se considere de âmbito local porque, das duas uma: ou está classificado como sendo de interesse local e a administração central já não tem qualquer jurisdição sobre ele (no aspecto específico da gestão, que aqui nos interessa relevar), ou até pode ter manifesto interesse internacional, que nunca deixará de ser considerado também de âmbito local. Então, isto só pode significar que todo o património cultural classificado passa a ser passível de, a qualquer momento, poder ser transferido para a tutela gestionária do município onde ele se encontra localizado.

Sou contra esta generalização acrítica e abstracta, uma vez que não existirá nenhum testemunho patrimonial que, sendo de interesse nacional, não deixe de ser considerado de âmbito local, porque nesta construção não há razão de exclusão do nível superior para o inferior, mas sim de completa e total inclusão – o património que está classificado nacionalmente, seja ele qual for, é sempre também de âmbito local! 

V – Conclusão.


Por isso sou, e serei sempre, até que me apresentem provas substantivas e poderosas em contrário, contra a transferência tutelar dos museus da República para os Municípios. Mas provas essas que não sejam apenas pretexto mal disfarçado para alijar responsabilidades financeiras da administração central, que assim vai conseguir manter os melhores recursos na receita, para os dedicar apenas à meia dúzia de entidades patrimoniais que possuam estatuto “superior”... prejudicando nitidamente o sentido da solidariedade institucional (e geográfica), ao arrepio das mais elementares normas da gestão dos bens públicos do Estado, independentemente dos lugares onde os mesmos se encontram localizados, e que nos deveriam obrigar a distribuir solidariamente os recursos financeiros pelos museus que mais deles têm necessidade, não por terem menos visitantes, não por terem menos receitas, não por terem menos capacidade de captar mecenas, não por estarem localizados na província, não por serem os menos empresarialmente apetecidos, mas sim porque fazem parte integrante do Património Cultural Português e contribuem para a afirmação identitária de um Portugal uno, coeso e territorialmente solidário, como deve ser num País democrático, moderno e solidário.

Em suma, acho um enorme erro político, conceptual e até mesmo estratégico, as transferências que já foram feitas (Museus de Aveiro, da Guarda e de Castelo Branco), das que se preparam para ser feitas (e que me escuso aqui de nomear) e do “elitismo serôdio” subjacente que sobrará como indevido benefício para as instituições museológicas que se vão manter na esfera tutelar da administração central.

Tanto se critica a desertificação do interior que até começamos a acreditar que alguma coisa em concreto vai ser feita, e depois assistimos à feitura do exactamente contrário ao que deve ser feito para travar tal desertificação – extinguimos serviços e desqualificamos instituições em nome de umas irrelevantes e absolutamente negligenciáveis poupanças que, se analisarmos correctamente, estou em crer que nem nisso resultarão…!

Como apontamento final, sublinharia que as reservas enunciadas pelo Senhor Presidente da República são muito bem vindas, dada a pertinência das mesmas, e que estão muito bem explanadas em quatro pontos da nota divulgada no site da Presidência. Mas tenho para mim que, se as dúvidas que eu tenho relativas ao sector da cultura forem idênticas ou muito próximas às que outros possam ter nos respectivos sectores de actividade pública, então melhor teria sido que esta Lei fosse, pura e simplesmente, vetada.

Agostinho Ribeiro

terça-feira, 31 de julho de 2018

Considerações sobre a proposta de decreto lei para a gestão dos museus do Estado

O projeto de decreto lei que agora foi tornado público, para um novo regime jurídico de autonomia de gestão dos museus do Estado, já mereceu as devidas e pertinentes considerações críticas por parte do ICOM Portugal e Europa, considerações estas que eu partilho integralmente.
Aqui pode ler o projeto de decreto lei e o comunicado do ICOM Portugal e Europa, para assim melhor acompanhar o meu raciocínio crítico, que não posso deixar de formular publicamente:

http://icom-portugal.org/2018/07/27/comunicado-icom-portugal-e-icom-europa-projeto-de-decreto-lei-novo-regime-de-autonomia-de-gestao/

Pretendo com este texto proceder a uma análise crítica aos pontos mais sensíveis e negativos da proposta de diploma, sem prejuízo de elencar também o que considero de mais positivo no projeto. E começo extamente pelos aspetos positivos do diploma ou do que ele pode significar:

I – Os aspectos positivos

1º - Finalmente alguma iniciativa se começa a sentir no setor do património cultural, em especial dos museus, monumentos, palácios e sítios, porquanto a “marca de estilo” que estava a ficar sedimentada no espírito de muitos de nós (profissionais do setor) era a de que não se iria fazer rigorosamente nada na vigência do atual governo, ficando-nos por algumas meras palavras de circunstância em atos mais ou menos solenes da cultura. E esta “perceção” era absolutamente antagónica ao que se esperava da atuação do primeiro ministro, atentos que estivemos todos ao seu lúcido discurso pró-cultura do então candidato ao cargo. Esperemos apenas que isto não passe de mais uma mera encenação política, para a todos nos entreter, como já nos aconteceu por demasiadas vezes;

2º – É de saudar o conteúdo da nota preambular da proposta, devendo sublinhar que concordo em absoluto com o seu teor, que subscrevo sem hesitações. Está este texto estruturado de forma simples, mas certeiro no apontamento que faz às limitações e condicionalismos da atual situação legal, sobretudo face às injustiças flagrantes criadas pela legislação vigente. E relembra, muito bem, que existe legislação de enquadramento da política de proteção e valorização do património cultural: a Lei de Bases do Património Cultural e a Lei Quadro dos Museus. Ainda bem que o faz porque, precisamente, já muitos de nós começávamos a acreditar que ninguém com responsabilidades no setor tinha conhecimento destas mesmas leis;

3º – Apreciei, particularmente, a assertividade com que se refere à atualidade organizacional e funcional do setor, nomeadamente considerando que as últimas reformas da Administração Pública, “que extinguiram, concentraram e descentraram setores fundamentais da cultura” foram feitas “numa lógica de racionalização de meios que não permite uma política cultural que dê cabal cumprimento aos valores e princípios consagrados, quer na Constituição, quer na lei” sic. Ora eu não podia estar mais de acordo com estas afirmações, de cujos maus desenvolvimentos e resultados, aliás, tenho vindo a denunciar desde a primeira hora;

4º – Gostei da ênfase dada ao papel do diretor, “a quem serão delegadas competências para uma gestão responsável, que prime pela transparência e pelo cumprimento do quadro legal vigente e adequado às suas características, permitindo agilizar a operacionalização do seu plano de atividades”. Eu, confesso, não diria nem descreveria melhor a síntese do que penso ser o papel de um diretor, nos confusos tempos que correm;

5º – Do mesmo modo considero altamente positivo o facto de as comissões de serviço serem alargadas para períodos de 5 anos, com uma única possível renovação, num máximo de 10 anos de mandato. Sou completamente a favor, desde que não se faça o que tem vindo a ser feito, para desprestígio e vexame destes profissionais, e que é o de não se analisarem os respetivos relatórios, não renovando as comissões de serviço dos titulares apenas porque apetece ao diretor geral fazê-lo. E tudo isto ao arrepio da lei, em modesto entender, com o consentimento explícito dos decisores políticos, o que torna a situação muito mais grave e politicamente reprovável, como não pode deixar de ser considerado;

6º – Ainda em relação à responsabilidade gestionária do diretor, é muito bem vindo o concurso público internacional, abrindo as candidaturas a quem tenha habilitações específicas ligadas ao património cultural (e não apenas à gestão, pura e dura, de um qualquer serviço, como se isso bastasse para se garantir uma boa gestão destas instituições e entidades, dada a sua natureza especial), não se condicionando a candidatura à vinculação do candidato à Administração Pública e, com esta atitude, abrindo consideravelmente o leque de prováveis boas candidaturas aos lugares. Absolutamente de acordo;

7º – Concluindo com a possibilidade de se estabelecerem contratos plurianuais de gestão, com a consignação de receitas, embora aqui com enormes dúvidas sobra a viabilidade da sua transposição regulamentar, já porque a descrição das receitas consignadas a cada instituição (ou grupo de instituições) não vem acompanhada de nenhum articulado corretivo de assimetrias; já porque a administração pública, neste setor específico da cultura, está infinitamente incapacitada para fazer face a estas novas competências, devido à enorme escassez (endémica) de recursos humanos.

Estes são os aspetos mais positivos e relevantes que encontro nesta proposta.

II – Os aspectos negativos

Já quanto aos aspectos negativos, eles podem sintetizar-se numa grande injustiça, objectivamente mensurável – o estabelecimento de unidades orgânicas compósitas - a partir do qual todos os pontos negativos se equacionam, como segue:

1º – Resulta desta proposta de estruturação a continuação estatutária de uma indevida hierarquização dos museus, segundo categorias muito mal explicadas e ainda menos fundamentadas, que eu resumiria da seguinte forma: os museus de 1ª categoria (grupos de museus com monumentos e/ou palácios associados, cujo estatuto de diretor é equiparado a subdiretor geral com diretor adjunto); museus de 2ª categoria (grupo de museus com monumentos e/ou palácios associados, em tudo igual ao anterior, mas cujo estatuto de diretor é equiparado a subdiretor geral sem diretor adjunto); museus de 3ª categoria (museus nacionais, com diretor equiparado a diretor de serviços); museus de 4ª categoria (museus não nacionais, com diretor equiparado a chefe de divisão); e um solitário museu de 5ª e última categoria (museu que,  embora tenha sob sua jurisdição gestionária o maior número de monumentos em todo o território nacional, e portanto deveria ter um diretor equiparado a subdiretor geral com diretor adjunto, terá apenas um diretor equiparado a chefe de divisão. Este museu é o de Lamego, que assim fica como sendo o mais penalizado e prejudicado de todos, vá-se lá saber porquê...!?);

2º – Devemos realçar que as designadas unidades orgânicas compósitas estão constituídas, segundo a explicação inscrita na própria proposta de diploma, por critérios observáveis, como sejam as afinidades patrimoniais, a dimensão equilibrada e racional de cada unidade, a eficácia e eficiência da gestão financeira, a eficácia e eficiência da gestão de recursos humanos e, finalmente, a proximidade geográfica. Ora acontece que todas as unidades orgânicas, sem exceção, apenas estão constituídas segundo o critério da proximidade geográfica, porquanto os restantes não são, pura e simplesmente, compagináveis com os agrupamentos propostos;

3º- De facto, não vislumbramos nenhumas afinidades patrimoniais, nem quaisquer outras mais, nas relações que o artigo 7º da proposta contempla, à exceção da primeira ali considerada (Museu Nacional de Arte Antiga e Casa Museu Anastácio Gonçalves, ainda que a possamos considerar algo forçada, admissível devido ao histórico das relações entre estas duas instituições).

E aqui convém abrir um parêntesis para referir que esta confusão conceptual, ao misturar indevidamente museus, monumentos e palácios como se de uma única espécie de serviços se tratasse, peca logo por dois grandes pecados capitais:

a)   Em primeiro lugar o facto de se considerarem, todos, como meros “serviços” da administração pública. Ora um museu, um palácio ou um monumento não são meros serviços, tipo repartição de finanças ou loja do cidadão, que em qualquer edificado se pode instalar... Não, um museu é uma INSTITUIÇÃO patrimonial, por definição legal, como os palácios ou monumentos são ESTRUTRAS patrimoniais, sendo que as instituições e estruturas do património nacional são todas elas (ou podem ser) serviços, mas nem todos os serviços da administração pública se podem considerar INSTITUIÇÕES ou ESTRUTURAS do património nacional, como estes são.

b)  Portanto, quando se reduz tudo a lógicas de unidades orgânicas, simples ou compósitas, não precavendo nem respeitando as identidades próprias de cada uma, segundo as diversas qualidades que lhes são próprias (desde o simbolismo patrimonial ao valor histórico e artístico dos acervos, passando pela importância dos mesmos nos territórios onde estão localizados), podem cair na tentação (como de facto caem neste caso concreto) de estruturar um modelo a partir de uma determinada centralidade, no caso Lisboa, criando hierarquias indevidas a partir de modelos mentais centralistas.

c)   Por isto mesmo é que esta proposta consegue ser e criar, ironia das ironias, um resultado que pensamos ser exatamente oposto ao que supostamente pretende alcançar. Olhando para o que referi no ponto 1º deste capítulo, facilmente percebemos a perversidade do modelo: as unidades orgânicas da 1ª categoria situam-se em Lisboa; as de 2ª categoria localizam-se no norte litoral; as de 3ª categoria reforçam a capitalidade por estarem maioritariamente também em Lisboa; deixando as de 4ª e 5ª categoria para o resto do território nacional (sobretudo o interior norte).

d)  Com a agravante de podermos constatar que as unidades orgânicas compósitas se agruparem por unidades simples sem quaisquer afinidades patrimoniais, nem tão pouco temáticas na maior parte dos casos. Se misturar o MNAA com a CMAG pode ser entendido como um mal menor aceitável, já tal mistura no que concerne ao Museu Nacional de Arqueologia com o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, é solução que não me parece que tenha qualquer lógica ou fundamento. A especificidade temática do Museu de Arqueologia é tal que não se compadece com tal solução administrativa, para além de (sublinho sempre que puder) desrespeitar a Lei Quadro dos Museus.

e)   Do mesmo modo, a norte, colocar o Museu D. Diogo de Sousa, o Museu dos Biscainhos e o Mosteiro de São Martinho de Tibães no mesmo agrupamento compósito é o mesmo que colocar um serviço de finanças, uma esquadra de polícia e uma unidade de saúde familiar a serem dirigidos por um mesmo e só diretor, porque o agente da polícia sempre pode fazer uma “perninha” como enfermeiro e, quem sabe, também ajuda à resolução dos problemas causados por incumpridores do fisco...

f)    Mas quando os fautores administrativos reduzem tudo a lógicas de serviços administrativos, não cuidando de perceber que para além de serem unidades orgânicas (que não podem deixar de ser, já bem o sabemos), os museus, monumentos, palácios e sítios são muito mais que isso, e que cada um deles carrega especificidades tais que não podem nem devem ser misturadas, então tudo é possível e tudo vai continuar na mesma, como até agora tem sido. E não tem sido bom, como todos sabemos.

4º – No resto, e tirando os casos “aceitáveis” dos agrupamentos considerados nas alíneas a) Museu Nacional de Arte Antiga e Casa Museu Anastácio Gonçalves, se considerarmos que esta Casa passa a ser uma “extensão” do MNAA, e da alínea c) Museu Nacional dos Coches e Picadeiro Real, tudo o mais atenta contra a Lei Quadro dos Museus, exatamente a mesma que o legislador diz dever ser respeitada na nota preambular...

5º - Em alternativa, sugeriria que se cumprisse a referida Lei, colocando um diretor em cada MUSEU, podendo agrupar o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, por um lado, e o Paço dos Duques de Bragança ao Castelo de Guimarães (e neste último caso com alguma reserva mental da minha parte), por outro. Em tudo o mais, as instituições museológicas e as estruturas patrimoniais consideradas devem, cada uma, ter um diretor que a ela se dedique em exclusividade de funções, nos termos de uma gestão por objetivos, com contrato programático plurianual, como muito bem se propõe neste documento, respeitando, além do mais, a legislação em vigor.
Que bom que seria se assim fosse realmente!

Pareceu-me ouvir, recentemente, alguns responsáveis governamentais (incluindo o primeiro-ministro) referirem a necessidade de se tomarem medidas corretivas para captação de quadros humanos para o interior, favorecendo a mobilidade e premiando os que optassem por se deslocar para serviços do interior do País. Ora esta formulação legal, neste setor tão especial e melindroso da cultura e da valorização e salvaguarda do nosso património histórico e artístico, parece rumar exatamente em sentido oposto, favorecendo as entidades que se localizam na capital e nos maiores centros urbanos e, penalizando, ao invés, os que deveriam ser mais favorecidos.
É injusto, e esta proposta não condiz com tais declarações políticas que foram, para mim, muito bem vindas.

III – O grave “caso” do Museu de Lamego

Para quem tiver dúvidas sobre a importância do Museu de Lamego, no plano patrimonial e museológico nacional, referiria com brevidade e singeleza o seguinte:

1º-   O Museu de Lamego é uma importante instituição patrimonial secular, que possui um acervo e uma história invejáveis. Senão vejamos:

a) Possui o conjunto retabular representativo das primeiras obras documentalmente comprovadas como sendo da autoria do maior pintor do pré-renascimento e renascimento português, o pintor Vasco Fernandes, conhecido por Grão Vasco;

b) Possui a maior e melhor coleção do Estado de tapeçarias flamengas do período renascentista, especificamente do 1º quartel do século XVI;

c)   Possui um conjunto de painéis de azulejos provenientes do Palácio Valmor, por decisão testamentária, considerado como uns dos melhores exemplares da policromia azulejar do país;

d)  Possui excelentes coleções de ourivesaria, de capelas e altares provenientes do extinto Convento das Chagas de Lamego, pintura, paramentaria e mobiliário, arqueologia e escultura, em tudo fazendo deste museu um dos grandes representantes artísticos da arte portuguesa em períodos alargados da nossa História, e que vão do século I a.C. ao século XVIII, com especial destaque para o período renascentista, por força da exemplaridade das obras que possui, já acima referidas.

2º - Para termos uma ideia do imenso valor artístico e patrimonial deste museu, bastará referir que é o 8º museu do Estado com mais Tesouros Nacionais, isto é, de bens móveis classificados como de especial interesse público e, por tal, sujeitos a medidas especiais de proteção, sendo mesmo o 5º, se excluirmos os museus com especificidade temática, como os Museus de Arqueologia, do Azulejo e dos Coches. Dificilmente se encontra no interior de Portugal, um museu com tal acervo, ombreando com os já reconhecidos museus nacionais de Viseu (Museu Nacional de Grão Vasco) e Évora (Museu Nacional de Frei Manuel do Cenáculo).

3º – Acresce ainda que, atualmente, o Museu de Lamego tem sob sua jurisdição gestionária (no âmbito da Direção Regional de Cultura do Norte, que o tutela) os seguintes monumentos nacionais: Capela de São Pedro de Balsemão, Mosteiro de São João de Tarouca e Mosteiro de Salzedas, bem como o Imóvel de Interesse Público, a Igreja de Santo António de Ferreirim. É, portanto, o Museu do Estado que mais estruturas patrimoniais tem sob sua alçada gestionária, por razões de proximidade geográfica, ou seja, pelas mesmíssimas razões que levam à constituição das unidades orgânicas compósitas dos restantes agrupamentos propostos.

4º – Perante um Museu que, segundo a metodologia proposta de organização gestionária, deveria ser uma unidade orgânica compósita, por ser o museu que mais estruturas patrimoniais tem sob sua jurisdição e, como tal, deveria ser dirigido por um diretor equiparado a dirigente superior de 2º grau, com um subdiretor equiparado a diretor de serviços, para sermos justos e igualitários, verificamos que continuará a ser dirigido por um chefe de divisão, sendo certo que da forma como está estruturada a orgânica da Direção Regional de Cultura do Norte (de forma mais formal ou informal), vai ter mesmo que continuar a ser o responsável de proximidade de todas estas estruturas patrimoniais que não são apenas da região, são de Portugal!

Pior não podia ser... Mas ainda vamos a tempo de corrigir alguns dos aspectos menos justos desta proposta. Queiram os responsáveis políticos fazê-lo!


Agostinho Ribeiro

sábado, 14 de outubro de 2017

Da contínua arbitrariedade de alguns decisores públicos




Ainda a propósito das renovações (ou não) das comissões de serviço dos dirigentes intermédios da administração pública em alguns setores da cultura (e apenas em alguns, que não em todos, o que nos prova bem das arbitrariedades que estão a ser cometidas), convém esclarecer que não se percebem as razões de quem pretende iludir esta questão (e que a tutela deveria considerar gravíssimas em vez de pactuar com elas), levantando dúvidas genéricas e difusas ao que se está a passar, a partir de pretensas boas práticas nunca devidamente explicitadas.

Vou tentar sintetizar historicamente a questão, para finalizar com a minha opinião sobre a mesma:

1 – As renovações automáticas dos dirigentes intermédios da administração pública estavam consignadas no nº 2 do artigo 4º do Decreto-lei nº 191-F/79, de 26 de junho, e vigorou no nosso sistema administrativo durante cerca de 10 anos. Segundo este diploma legal a renovação era automática, sem mais procedimentos burocráticos se até 30 dias antes do seu termo a Administração ou o próprio interessado não manifestassem expressamente a intenção de a fazer cessar;

2 – Posteriormente, com o Decreto-lei nº 323/89, de 26 de setembro, a renovação deixou de ser automática porque passou a depender da comunicação expressa do membro do Governo competente, que deveria ser dada até 30 dias antes do termo da respetiva comissão (cfr. nº 3 do artigo 5º deste decreto-lei). Ou seja, desde outubro de 1989 que as renovações das comissões de serviço deixaram de ser automáticas, mas continuaram a depender do livre arbítrio e de um excessivo poder discricionário da tutela;

3 – Com a lei nº 49/99, de 22 de junho, esta situação manteve-se no essencial, alterando-se apenas o prazo obrigatório da comunicação de renovação, que passou de 30 para 90 dias, como estabelecia o nº 3 do artigo 18º deste diploma legal;

4 – Ao longo deste tempo todo começou a perceber-se que tamanho poder discricionário, demasiado arbitrário, não era nada abonatório para a eficácia e o bom nome da administração pública uma vez que as renovações, ou ausência delas, não assentavam em qualquer base meritória relacionada com o desempenho profissional dos titulares, como deve ser num regime republicano assente num Estado Democrático e de Direito. Por esta razão, e antevendo já a Lei nº 10/2004 de 22 de Março (1º SIADAP), publicou-se a Lei nº 2/2004, de 15 de Janeiro, atualmente em vigor, ainda que com algumas alterações posteriores;

5 – Nesta lei estabeleceu-se a obrigatoriedade da “análise circunstanciada do respetivo desempenho e dos resultados obtidos”, tendo “como referência o processo de avaliação do dirigente cessante, assim como do relatório de demonstração das atividades desenvolvidas e dos resultados obtidos” (cfr. nº 2 do artigo 23º da Lei nº 2/2004, de 15 de janeiro) ou seja, estabelecia-se como regra normativa a obrigatoriedade de avaliar o mérito profissional de cada um, a partir da qual o superior hierárquico teria de decidir pela renovação ou abertura de novo concurso público para provimento do respetivo lugar;

6 – Evitavam-se assim, com este importante diploma legal, as eventuais tentações arbitrárias e discricionárias de qualquer organismo das diversas administrações públicas, uma vez que passaram a ser detalhadamente especificadas as circunstâncias e os procedimentos obrigatórios em que a cessação podia ocorrer (cfr. artigo 23º e seguintes do referido diploma, com especial relevância para as alíneas do artigo 5º onde são tipificadas todas as situações possíveis de produzir cessação de funções), ficando vedada a qualquer decisor tutelar a possibilidade de renovar, ou não, em função de critérios generalistas por não estarem tipificados na lei.

Pelo que, hoje em dia, qualquer despacho de não renovação baseado em fundamentações generalistas, mesmo que pretensamente igualitárias (que jamais o poderão ser se não estiverem ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 25º, da Lei nº 2/2004) só pode ser considerado ilegal, na minha opinião, porque desrespeita esta lei, fere princípios consagrados no Código do Procedimento Administrativo, e viola direitos protegidos pela Constituição da República Portuguesa. De sublinhar que para poder ser considerado igualitário fora do articulado acima descrito, teria necessariamente que abranger a totalidade das “administrações públicas” que se regem pela mesma lei nº 2/2004, e isso só pode ser resultado de decisão a nível governamental. E nada disto está a acontecer neste momento.

Que fique registado para memória futura!

Agostinho Ribeiro

terça-feira, 6 de junho de 2017

Breves considerações em torno do Projeto de Lei-Quadro da Descentralização/Decreto-Lei Sectorial para a Cultura.



A proposta de Lei-Quadro da Descentralização para a área da Cultura constitui mais um preocupante retrocesso conceptual, histórico e técnico, em matéria de salvaguarda e valorização do Património Cultural de Portugal, que nos deveria desassossegar a todos, independentemente dos nossos alinhamentos ideológicos e/ou partidários. De facto, o que aqui está em causa é uma questão primordial de conceito e não um mero modelo de gestão que apenas se poderia entender como uma, entre tantas outras, forma expedita de aligeirar responsabilidades fundamentais do próprio regime, como tentarei abaixo descrever.

Como nota prévia, aponto a certeza de que todos os meus leitores sabem perfeitamente que sempre assim pensei. Na verdade, sempre defendi o anterior modelo de gestão pública do património, (anterior às alterações que se iniciaram em 2011), que certamente carecia de melhorias no plano das responsabilidades directivas, em termos de autonomias técnicas, humanas e financeiras, de regulamentos claros e precisos para normalização de procedimentos e do aprofundamento das redes nas suas componentes operativas, mas não o seu abandono e muito menos a sua reversão para um modelo similar ao dos anos sessenta do século passado. Não estou portanto sujeito a qualquer outra razão que não seja a que sempre me orientou, no entendimento do papel que o Estado deve ter e manter na valorização e salvaguarda do nosso património cultural. Há muitos anos que assim penso, e ajo em conformidade com este meu pensamento.
Vejamos, pois, as principais razões que me levam a este escrito:

1ª – A proposta exibe excessivas confusões e contradições conceptuais, não se percebendo nela qualquer linha definidora de uma política nacional concertada, equilibrada e harmoniosa, que permita antever a beneficiação e valorização do nosso património cultural, que penso dever ser a preocupação principal de todos nós e, em primeira mão, dos próprios promotores da legislação agora apresentada.

Começa logo por não esclarecer devidamente o que se entende por “património cultural que, sendo classificado, se considere de âmbito local” pelo menos nos termos em que nos permita compreender onde e em que circunstâncias se ultrapassa tal âmbito (cfr. Art.2º).  A tentativa expressa no nº 2 do artigo 4º, ao pretender esclarecer tal dúvida, explica-nos que se consideram de âmbito local “os imóveis classificados do Estado com significado predominante para o respetivo município” (?), signifique isto o que significar... para logo de seguida, e contraditoriamente, se transferirem “automaticamente” 72 imóveis que são, precisamente, de manifesto e inequívoco interesse nacional, pelo menos no modelo conceptual e legal vigente! Repare-se bem: 47 dos imóveis classificados são Monumentos Nacionais, 18 Imóveis são de Interesse Público e 2 são Sítios de Interesse Público. Quase todos, portanto, de interesse e importância manifestamente nacionais! (cfr. nº2 do art. 6º).

É claro que qualquer um destes imóveis não pode deixar de ter "significado predominante" para o município onde o mesmo está localizado, porque não estou a ver, sinceramente, onde é que um imóvel de valor nacional não tenha significado predominante a nível local, pelo que esta construção justificativa é tão desprovida de sentido que até me questiono mesmo se não terá sido resultado de um qualquer arreliador lapso.

Porém, esta atitude destrói, de uma só e impiedosa penada, o trabalho secular que a República desenvolveu até aos nossos dias para dotar Portugal de uma classificação dignificadora do mais relevante património edificado nacional, que fosse entendido à escala do País como conjunto fundamental e imprescindível para a construção da nossa identidade colectiva, enquanto Povo.
Se andamos há mais de um século a definir estes “bens patrimoniais” como de interesse público nacional, é obrigação dos proponentes desclassificar primeiro todos estes imóveis, e só depois assumir estas transferências de tutela gestionária para as autarquias, resolvida que fique a questão de os não considerarem de interesse nacional, já que não se lhes reconhece estatuto suficiente para se manterem na esfera tutelar da Administração Central, como irá acontecer, por exemplo e contraditoriamente, a outros bens nacionais do património português, como é o caso dos Museus Nacionais.

E não deixa de ser curioso que é precisamente quem mais se diz orgulhar da sua matriz republicana que se prepara agora para reverter alguns dos símbolos maiores da própria República, por razões que temos o dever de considerar, de forma inconcebível e até mesmo contraditória, ideológicas. O conjunto patrimonial e museológico que foi sendo paulatinamente construído, numa lógica de equilibrada, justa e necessária representatividade do todo nacional, obrigatoriamente resultando do somatório das partes mais emblemáticas e simbólicas que cada território específico soube produzir a favor da nossa identidade cultural, passa agora a ficar gestionariamente disperso, ao sabor e livre arbítrio de lógicas locais que, por muito bondosas que sejam, jamais poderão deixar de ser o que são – locais!

2ª - Em linha com esta inadequada confusão conceptual, é-nos ainda apresentada a proposta de transferência dos museus “não nacionais” do Estado, já que se propõe passar para as câmaras municipais a “gestão, valorização e conservação dos museus que não sejam museus nacionais” (cfr. nº 3 do art. 4º), também aqui não se percebendo, em bom rigor, o que pretende dizer o legislador com tal asserção... Isto porque, no estado de completa anarquia conceptual em que nos encontramos atualmente, conviria explicitar claramente quais os museus que entende o legislador não serem nacionais: são todos os que não possuem a designação específica de “Nacional”? Incluímos aqui também os que possuem relevantíssimos Tesouros Nacionais nos seus acervos? Ou serão ainda mais alguns, mesmo todos os que não possuindo nem uma coisa nem outra possuem contudo acervos de referência e importância reconhecidamente supramunicipais?
É que nesta proposta de lei passam, desde já e automaticamente, 5 museus que até há bem pouco tempo estavam sob tutela da Administração Central (cfr. nº2 do artº. 6º), sem nos ser dada qualquer explicação lógica, devidamente fundamentada, sobre as razões que levam a ser estes, e não também todos os outros, os museus transferidos de tutela gestionária.
Recordamos que as transferências já efectuadas para as tutelas autárquicas, e que são, aliás, a maior parte dos museus agora designados, resultaram de critérios nunca devidamente submetidos à reflexão pública, e concretizaram-se ao arrepio de quaisquer fundamentos lógicos que as admitissem claramente benéficas para os museus destinatários, carreando a ideia  difusa de transferências mais baseada em interesses exógenos à causa museológica do que em função dos interesses próprios dos museus.

E se forem só estes 5 museus a transitarem de tutela, que sentido faz então o conteúdo ínsito na alínea b) do artigo 2º da Proposta? Será que, por via desta construção legal, passam todos os restantes museus a “Museus Nacionais”, justificando-se assim (e resolvendo) a contradição desta proposta de diploma legal que estabelece a transferência de todos os museus não nacionais, para logo de seguida os excluir a todos, fora os 5 nomeados no Anexo II? Ou será que os restantes museus não nacionais apenas ficam numa espécie de “limbo”, à espera de melhores dias, ou seja, à espera que autarcas mais aventureiros e voluntariosos se decidam assumir as responsabilidades que não estão a ser assumidas por quem tinha a obrigação constitucional de o fazer, numa perigosa e nada transparente estratégia de médio prazo para terminar de vez com o ideal republicano de uma rede de museus do Estado, equilibradamente distribuídos pelo todo do território nacional, que pudessem constituir exemplos e âncoras para as restantes tipologias museológicas instaladas nos respectivos territórios?

A desertificação do País, em estruturas emblemáticas e simbólicas do Estado que afirmem a integralidade do todo nacional, também aqui na Cultura a ser activamente promovida por quem deveria ter a preocupação maior e primeira de a evitar...!

3ª - Acrescente-se que este processo não nos parece ser de verdadeira descentralização, como refere o seu título. Parece antes um processo ardiloso de transferência de competências  que resulta de uma mera demissão do Governo perante as suas obrigações legais, optando pela via mais fácil de transferir tais responsabilidades para as autarquias, com a agravante de sublinhar que serão acompanhadas dos respectivos envelopes financeiros, como se isso correspondesse a uma garantia de estabilidade orçamental para assegurar uma correcta gestão autárquica dos bens públicos de valor nacional...
Falacioso, como sabemos, porque os irrisórios meios financeiros que actualmente estão alocados a estes bens (absolutamente negligenciáveis no que respeita aos bens imóveis classificados e dramaticamente suborçamentados no que respeita aos museus) apenas garantirão alguma tranquilidade aos bens que passarem para a gestão de municípios exemplarmente saudáveis, do ponto de vista financeiro, ficando nós de apurarmos em que circunstâncias pode o Governo garantir que cada Câmara Municipal cumpra as suas novas responsabilidades, ad aeternum, sem esbarrar no respeito que deve pela autonomia do próprio poder local.

4ª - Esta confusão que tem vindo a ser lançada, de que se trata de um bondoso e tão necessário processo de descentralização, tem ainda o enorme inconveniente de não respeitar o histórico dos bens transferidos, nem ajudar à melhor percepção do que é uma verdadeira descentralização do Estado. Esta deveria passar por um processo adequado, e legalmente sufragado, de Regionalização, e não de mera transferência de competências que, no caso sectorial da cultura, (e em especial do património cultural), facilmente se pode entender como mera forma, expedita ou nem por isso, de demissão do Estado.  Este, para corresponder às exigências e anseios de uma pretensa elite cultural (apenas uma mão cheia de prebendados, sempre respaldados nas confortáveis costas dos decisores políticos), preferem a comodidade da capital e os holofotes permanentes focalizados nos bens culturais mais mediáticos e turisticamente mais apetecíveis, do que essa complexa e difícil tarefa que se chama “serviço público”, e que é a de saber distribuir equitativamente, e em função de critérios sólidos, transparentes e razoáveis, as sempre frágeis disponibilidades financeiras para a gestão do nosso património móvel e imóvel em todo e para todo o território nacional!

5ª - De notar ainda que todas as competências a atribuir às autarquias locais (cfr. artigo 5º), mais não são que as responsabilidades que, directa ou indirectamente, já se encontram atribuídas às Câmaras Municipais para os bens de manifesto interesse municipal, tratando-se aqui apenas de validar tais responsabilidades em bens de interesse supramunicipal, mas de uma forma que a todos nos deveria parecer absolutamente ínvia, em especial aos que tanto se reclamam de lídimos herdeiros de um belo conjunto de princípios e valores da República, que não caducaram nos tempos modernos, porque são simbolicamente fundamentais para a sustentabilidade e perenidade do próprio regime republicano.

Já escrevi algures que é impossível, a todos os títulos, estabelecer políticas de carácter nacional sem possuir os instrumentos operatórios que as permitam executar, o que significa que o Estado deixa de poder actuar em amplos sectores do património cultural nacional, uma vez que deixa de possuir a tutela directa dos mesmos, e o respeito pela autonomia do poder local não pode ser ultrapassada com o estabelecimento de múltiplas e acrescidas regras a impor a este poder.
E as contradições, até metodológicas, continuam, porque se tudo tiver que continuar a ser submetido à apreciação dos organismos centrais ou desconcentrados da Administração Pública, como parece poder inferir-se pela leitura da alínea c) do artigo 5º da Proposta, então podemos nós perguntar qual a razão de estarmos a complicar procedimentos (por acrescento de um nível intermédio de burocracia e de custos para o erário público), e não ficamos, pura e simplesmente, como estamos actualmente?
Bem sabemos todos que estamos mal, mas é meu modesto entender que o caminho a seguir é, precisamente, o oposto deste que agora nos é proposto, dignificando as nossas estruturas patrimoniais, conferindo-lhes maior autonomia e responsabilidade gestionária, dotando-as de meios técnicos, humanos e financeiros adequados à enorme responsabilidade que têm, numa lógica nacional para os bens de interesse nacional, regional para os bens de interesse regional e local para os bens de interesse local, todos integrando uma rede do património nacional que faça convergir para benefício comum o que de melhor existe em cada uma das unidades que compõem este todo.

Mas tudo isto sem confusões de conceitos, oportunismos financeiros ou obscuridade de intenções, sem misturar lógicas locais a gerirem bens nacionais e vice-versa, antes estruturando os diversos níveis através de um sistema de rede que se perceba bem de desejável complementaridade, e jamais de usurpação ou alienação indevida de responsabilidades.

6ª - Como também sempre defendi, a Regionalização é uma premente necessidade para Portugal, porque precisamos urgentemente de começar a resolver os graves problemas e desequilíbrios estruturais que afectam, sobretudo, as regiões mais desfavorecidas do País. Mas entendamo-nos: aos problemas e às matérias que englobam e dizem respeito ao todo nacional, deve sempre prevalecer a lógica gestionária do Governo Central, e às matérias que dizem respeito aos territórios de cada região  a sua gestão deve ser entregue à tutela de cada nova entidade regional, do mesmo modo que a cada uma das autarquias se deve manter e reforçar as respectivas competências para o respectivo território municipal. Constitui, portanto, e em modesto entender, uma grave subversão deste princípio afectar tutelarmente áreas de serviço público, cujo interesse é reconhecidamente nacional, às regiões ou às autarquias, dado que só pode cumprir cabalmente as suas nobres funções numa lógica integrada, a nível global, e jamais de outra qualquer forma que não seja absolutamente complementar e subsidiária ao papel do primeiro e inalienável responsável - o Governo de Portugal.

Por estas razões, sumariamente apresentadas, e ainda por questões de natureza técnica, profissional e deontológica (aqui num plano já mais profissional que não cabe neste contexto), seria muito importante que este Projecto de Decreto-Lei Sectorial, para a Cultura, não fosse viabilizado, porquanto ele representará um gravíssimo retrocesso ao enquadramento legal que, para esta área, Portugal se pode ainda orgulhar de possuir (as Leis Quadro do Património Cultural e dos Museus).



Agostinho Ribeiro

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Museu Nacional Grão Vasco - Balanço/Síntese da comissão de serviço *


Ao terminar a minha comissão de serviço como diretor do Museu Nacional Grão Vasco, e face às decisões unânimes tomadas na Assembleia Municipal e na Câmara Municipal de Viseu, em resultado da informação prestada pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal, solicitando a minha recondução no exercício destas funções, gostaria de agradecer aos mais altos responsáveis de Viseu, no modo plural da sua representatividade e na expressão grandiosa da sua unanimidade, a forma sempre generosa e colaborante com que nos ajudaram a cumprir a nossa missão de serviço público cultural.
Acrescem idênticas tomadas de posição de algumas entidades públicas, como a Região de Turismo Centro de Portugal e a Junta de Freguesia de Viseu, bem como de várias personalidades e entidades viseenses e não viseenses, o que me impõe o gratificante dever de a todos agradecer, profundamente emocionado, pelo extraordinário carinho e o solidário reconhecimento pelo trabalho que realizamos nestes últimos anos no nosso Museu Nacional Grão Vasco.
Assim, agradeço às entidades e pessoas que estiveram connosco envolvidas, (mais de 30 entidades envolvidas, 55 membros da Comissão de Honra do Centenário e 10 membros da respetiva Comissão Organizadora), apoiando e colaborando positivamente nas atividades museológicas, académicas, artísticas e sociais deste museu, em múltiplos projetos realizados ao longo dos últimos três anos em que tive o privilégio de o dirigir, e desejo profundamente que seja dada continuidade à afirmação e visibilidade cada vez maior do nosso Museu.
Ao longo destes três anos alargamos e aprofundamos as nossas relações institucionais com praticamente todas as instituições e entidades públicas, e muitas privadas, da sociedade viseense, alcançamos a designação de museu nacional e comemoramos, de forma que nos pareceu muito digna, diversificada nas áreas temáticas e plural nos públicos a atingir, o Centenário da Fundação do Museu Nacional Grão Vasco. Para além das inúmeras realizações performativas, graças às parcerias estabelecidas (teatro, música, dança e múltiplos eventos de caraterísticas mistas) que se destinaram a celebrar festivamente o centenário, organizamos uma série de encontros e conferências temáticas, abordando questões muito diversas da cultura, património, museologia, arte e cidadania, e apresentamos ao público uma rica e diversificada programação de exposições temporárias, tanto no museu como fora dele, para assim darmos maior visibilidade e valor ao património artístico que se encontra sob nossa responsabilidade tutelar.
Em gratificante parceria com o Departamento de Obras da DGPC, resolvemos alguns problemas estruturais com que o edifício se debatia: impermeabilizando o interior do Paço dos Três Escalões; recuperando os vãos do edifício que denotavam o efeito de degradação produzida pelas condições atmosféricas adversas; recolocando em funcionamento alguns equipamentos de controlo ambiental que se encontravam inoperacionais; e, finalmente, iniciando um processo de resolução do magno problema do controlo ambiental das salas de exposição do piso 3.
Alcançamos também muito bons resultados operacionais, com aumentos significativos em todos os dados mensuráveis da nossa gestão nos últimos três anos, com um crescimento médio anual de 24% nas receitas e de 19% nas entradas, sublinhando-se aqui que no presente ano do centenário este crescimento do número de visitantes atingiu a gratificante percentagem de mais 33% do que o alcançado no ano passado, fixando-se nos 114.568 visitantes em número absoluto de entradas, muito acima dos 100.000 visitantes que tínhamos estabelecido como meta para o centenário. Somos hoje o 5º museu do Estado (DGPC) mais visitado, e o 1º fora de Lisboa.


Também por tudo isto temos sido muito agradavelmente surpreendidos com o reconhecimento por este trabalho, e ao Museu Nacional Grão Vasco, por parte de várias entidades e instituições viseenses, às quais estaremos eternamente gratos: Beirão de Mérito Cultural, pela Confraria de Saberes e Sabores Grão Vasco; Prémio Acolhimento Adamastor MGV, pela Associação Cultural Adamastor; Prémio Anim’Arte 2015, Especial Museu Nacional Grão Vasco; Reconhecimento Freguesia de Viseu, pelos 100 anos de existência do MNGV; Menção Honrosa Rotary Clube de Viseu, pelo Centenário do MNGV; Mérito Institucional, na Gala do Comércio 2016, pela Associação Comercial do Distrito de Viseu; para, finalmente, sermos agraciados com a mais elevada distinção institucional de Viseu, a Medalha de Ouro da Cidade de Viseu, 2016, com atribuição do Título de Cidadão Honorário de Viseu, “pelos serviços de excepcional relevância que o Museu prestou ao Concelho de Viseu”.
Não podíamos ter recebido maior Honra que esta!
Encontrando-me, portanto, com o sentimento claro do dever cumprido, deixo, finalmente, um agradecimento muito especial a toda a equipa do museu, que nos respetivos campos de atuação muito contribuíram para a obtenção dos excelentes resultados alcançados, sobretudo no ano maior do centenário da fundação do museu, cujas comemorações ainda não estão finalizadas, o que está previsto acontecer em março de 2017.


A Senhora Dr.ª Paula Cardoso, técnica superior do Museu Nacional Grão Vasco, assumirá as funções de diretora do MNGV em regime de substituição, a partir do dia 1 de fevereiro do corrente, conforme despacho exarado superiormente. Profissional competente, dotada de uma rara capacidade de trabalho e de uma inquebrantável dedicação à causa pública, manifesto o meu desejo dos maiores sucessos no desempenho destas exigentes funções, na certeza de que as saberá exercer com a dignidade, capacidade e competência com que já nos habituou. A toda a equipa do MNGV desejo também os maiores sucessos e felicidades, tanto pessoais como profissionais.
A todos aqui deixo lavrado o meu muito obrigado.
Agostinho Ribeiro

* Museu Nacional Grão Vasco - A Palavra ao Diretor | 08 (Última)