Transferir para os órgãos
municipais a competência de gerir, valorizar e conservar os museus (do Estado)
que não sejam museus nacionais, como estabelece
a alínea b) do artigo 15º da Lei de Descentralização, é por mim
considerado como um dos mais graves atentados aos ideais republicanos, para a
área da cultura e dos museus, de que há memória em Portugal.
I – O erro histórico.
Desde logo porque estas entidades
museológicas foram criadas pelos Governos da 1ª República (entre 1912 e 1924)
para se constituírem como um conjunto de instituições culturais significativas,
tanto quanto possível localizadas no todo do território nacional (entenda-se
equilibradamente distribuídas pelas regiões portuguesas que, no seu conjunto,
dão/dariam corpo e expressão ao sentido identitário nacional), de uma forma
estruturada e que se pretendia exemplar, enquanto símbolos maiores do nosso
património artístico e histórico. Tudo resultando em somatório lógico de
parcelas do que de melhor se produziu e coleccionou ao longo dos tempos, em
cada região do país (daí a designação de museus regionais para muitos deles, no
início e desenvolvimento deste processo constitutivo, à falta de melhor
designação).
A ideia era a de criar infra-estruturas
que validassem uma política global para a salvaguarda e valorização do
património cultural do país (e até para a “educação” do povo), o que só se
conseguiria alcançar mantendo-as na esfera da administração central, num modelo
orgânico e funcional de rede, como hoje diríamos, para assim dar substância a
uma tessitura de museus portugueses, à escala do território nacional, e
submetidos a uma hierarquia operativa que ajudasse ao cumprimento missionário
que lhes cabe realizar.
É claro que poderíamos aprofundar
todo o processo histórico que levou à criação de 13 museus no período acima
considerado, e entre todos eles, 7 possuírem estatuto ligado à administração
central (Aveiro, Évora, Faro, Bragança, Viseu, Lamego e Tomar), 2 ficarem sob a
responsabilidade tutelar das respectivas Juntas Gerais do Distrito (Beja e Vila
Real), e 4 pelas respectivas Câmara Municipais (Leiria, Braga, Abrantes e
Chaves). Não o faremos aqui, porque não cabe neste breve considerando tal
abordagem mas sublinharia desde já a clarividência dos então responsáveis
públicos, que souberam estruturar as tutelas destas unidades museológicas muito
em função da qualidade intrínseca dos seus acervos, sem prejuízo de outros
fenómenos de natureza mais política que contribuíram para esta estratificação
institucional. Ficará para outra altura, havendo necessidade de maior
clarificação.
II – Descentralização
ou demissão?
No meu entender, uma verdadeira
descentralização seria conseguida através da disponibilização, às equipas
directivas e de pessoal de cada museu, de um conjunto de competências e
capacidades gestionárias que lhes permitissem actuar em conformidade com as
realidades e necessidades específicas de cada um, mas sempre em respeito e em
articulação com as políticas culturais nacionais que fossem estabelecidas para
o sector, e sempre também submetido à orientação superior de quem tem mandato
democrático para, a cada momento, definir as linhas gerais das políticas
culturais.
Assim sendo, considero que está
muito mais próximo do conceito de uma verdadeira descentralização a recente
proposta de autonomia dos museus, monumentos, palácios e sítios (com todos os
defeitos que já enunciei num outro texto), que este lacónico articulado legal,
que ainda por cima nos remete para acordos com cada município a propósito
da possibilidade de transferir as
competências gestionárias dos museus em causa. Parece querer dizer que, se der,
deu, se não der, paciência... que logo mais se verá como vai ser, o que levanta
questões até de natureza constitucional, como alguns senhores deputados (Paulo
Trigo Pereira, independente pelo PS, entre outros) já levantaram, e muito bem.
Ora, em modesto entender, isto
não é descentralização. É demissão do Estado, pura e simples, ao alijar as suas
mais nobres e elevadas funções constitucionais de zelar pelo património
artístico e histórico nacional, transferindo-as para a esfera tutelar
municipal, o que reduzirá drasticamente o alcance da missão de cada entidade
transferida, por muito que nos garantam que não. Desde logo porque cria
desequilíbrios muito maiores do que os existentes, já que cada museu
transferido passará a depender mais da boa ou má vontade e predisposição
natural dos responsáveis autárquicos e das suas agendas de política local, bem
como da capacidade financeira da autarquia em causa. E sabemos o quão diversa é
a realidade financeira, e de sensibilidade para as “coisas da cultura”, das
nossas autarquias... É claro que argumentarão sempre com o acompanhamento da
transferência com um envelope financeiro adequado à realidade museológica em
causa, e o estabelecimento de regras específicas, devidamente contratualizadas,
para zelar pelas boas práticas museológicas das entidades transferidas. Mas
isso é completamente enganoso e erróneo, porque apenas poderá ter força legal
durante a vigência do mandato político das partes contratantes, já que a partir
daí a autonomia democrática dos órgãos de soberania não possui mecanismos
impositivos capazes de contrariar o livre arbítrio e poder decisório da
autarquia, em matéria de gestão dos seus próprios recursos e equipamentos, como
passariam (e passam) a ser estes museus. E ainda bem que assim é, senão
estaríamos a condicionar a liberdade democrática do poder local, e isso seria
péssimo para o regime.
Portanto, fazer depender dos
municípios os valores culturais e patrimoniais que são de inequívoca
importância nacional, deixando-os sujeitos a uma agenda cultural
obrigatoriamente localizada (por interesses que a própria definição legal
sufraga, em respeito pela independência e não ingerência dos diferentes órgãos
de soberania) num qualquer território concelhio, é um caminho ínvio que
dificilmente subscreverei.
Depois, porque as próprias
colecções, sendo de âmbito e valia nacional, passam a ser geridas por entidade
políticas cuja visão missionária se concentra totalmente na área geográfica que
serve, sem prejuízo de existirem autarquias que sabem ultrapassar essa visão
paroquial do património que possuem no seu território e imprimem dinâmicas
supra municipais aos seus equipamentos culturais, e em particular aos
museológicos. São os raros, raríssimos, exemplos de excepção que apenas me
confirmam a regra...
Devo aqui ressalvar que não
considero apenas os museus com designação “Nacional” como sendo os únicos
detentores de acervos com valia homónima. Museus como o de Lamego e o de
Aveiro, para dar apenas dois exemplos paradigmáticos, possuem acervos de
incontornável valia nacional cuja passagem para a gestão autárquica, eventual
ou real, constitui inquestionável empobrecimento estatutário.
III – A César o que é
de César...
Temos de ser claros e incisivos
nesta matéria – os museus municipais são insubstituíveis e fundamentais para
uma harmoniosa organização do panorama museológico nacional. Importantíssimos
instrumentos de cultura, ao serviço das comunidades onde estão inseridos, e dos
públicos em geral, alguns mesmo reconhecidos internacionalmente, quer pelos
conteúdos que expõem, quer pelas boas práticas museológicas que desenvolvem;
mas não podem nem devem, no entanto, ser confundidos nos respectivos papéis com
os outros museus, nomeadamente com os museus que possuem acervos supra
municipais, uma vez que cada tipologia cumpre (ou deveria cumprir) a especial
missão e desiderato para que foram criados. Aos municípios o que é dos municípios
e à administração central o que dela deve ser, cada qual mantendo e respeitando
as suas origens históricas tutelares, para cabal cumprimento das suas
obrigações institucionais, e até mesmo constitucionais.
É para mim muito claro que os
museus do Estado devem sempre, e em todas as circunstâncias, manter relações
institucionais, e até mesmo programáticas, com os municípios onde estão
localizados, do mesmo modo que aos museus municipais se espera e deseja uma boa
articulação com os serviços e estruturas públicas de serviço cultural central,
de que o projecto da Rede Portuguesa de Museus deveria ser pólo aglutinador de
referência.
Significa isto que os museus
criados pelos municípios cumprem o desiderato para que foram criados, do mesmo
modo que os museus criados por razões diversas se devem manter nas respectivas
esferas tutelares, porque só assim são capazes, todos, de responder
positivamente perante as suas obrigações de serviço público cultural.
Naturalmente que aqui me estou a referir aos museus tutelados por entidades da
esfera pública, e não outras.
A cada um, consoante a natureza
histórica, fundacional, patrimonial e simbólica que esteve na sua constituição
e criação, se deve dar a relevância e importância devidas, sejam museus
tutelados pelas autarquias, sejam tutelados pelo Governo da República. O que
não se pode, ou não se deve fazer, é adulterar profundamente o seu sentido
primordial de existência, a pretexto de uma qualquer necessidade conjuntural,
por mais exigentes que sejam essas necessidades e, com tais argumentos,
subverter definitiva e irremediavelmente o primordial papel “ideológico” para e
porque foram criados.
IV – À espera da
regionalização.
É claro que num mundo quase
perfeito de um Portugal regionalizado, teríamos os museus públicos portugueses
estruturados em nacionais, regionais e locais, cada qual sob a esfera tutelar
das administrações homólogas, numa hierarquia de valor em função da qualidade
dos acervos e da vocação específica de cada instituição. Não havendo
regionalização do país, o pior que poderia ser agora feito, mesmo para os
museus públicos passíveis de serem transferidos para a esfera regional, é
transferi-los acriticamente para a esfera local, como se ambos os níveis de
administração fossem, mais coisa menos coisa, o mesmo. Mas não são, e não faz
qualquer sentido fazê-lo, porque isso retira estatuto ao museu e, pior que
isso, deturpa totalmente o sentido missionário original que possuía até ao
momento da transferência.
Simbolicamente, produz o efeito
geral (que até pode ser aparente, mas é sempre desastroso), de desqualificação
do próprio acervo, por enquadramento mental de que quanto mais elevado for o
estatuto da entidade, mais importante é o seu valor e, por conseguinte, mais
qualificado é o território e a comunidade que orgulhosamente o possui (e,
confesso, não considero que seja mau pensar que assim se pense).
Também por estas razões não faz
qualquer sentido o articulado legal da alínea precedente, que considera ser da
competência dos órgãos municipais a gestão, valorização e conservação do
património cultural que, sendo classificado, se considere de âmbito local
porque, das duas uma: ou está classificado como sendo de interesse local e a
administração central já não tem qualquer jurisdição sobre ele (no aspecto específico
da gestão, que aqui nos interessa relevar), ou até pode ter manifesto interesse
internacional, que nunca deixará de ser considerado também de âmbito local.
Então, isto só pode significar que todo o património cultural classificado
passa a ser passível de, a qualquer momento, poder ser transferido para a
tutela gestionária do município onde ele se encontra localizado.
Sou contra esta generalização
acrítica e abstracta, uma vez que não existirá nenhum testemunho patrimonial
que, sendo de interesse nacional, não deixe de ser considerado de âmbito local,
porque nesta construção não há razão de exclusão do nível superior para o
inferior, mas sim de completa e total inclusão – o património que está
classificado nacionalmente, seja ele qual for, é sempre também de âmbito local!
V – Conclusão.
Por isso sou, e serei sempre, até
que me apresentem provas substantivas e poderosas em contrário, contra a
transferência tutelar dos museus da República para os Municípios. Mas provas
essas que não sejam apenas pretexto mal disfarçado para alijar responsabilidades
financeiras da administração central, que assim vai conseguir manter os
melhores recursos na receita, para os dedicar apenas à meia dúzia de entidades
patrimoniais que possuam estatuto “superior”... prejudicando nitidamente o
sentido da solidariedade institucional (e geográfica), ao arrepio das mais
elementares normas da gestão dos bens públicos do Estado, independentemente dos
lugares onde os mesmos se encontram localizados, e que nos deveriam obrigar a distribuir
solidariamente os recursos financeiros pelos museus que mais deles têm
necessidade, não por terem menos visitantes, não por terem menos receitas, não
por terem menos capacidade de captar mecenas, não por estarem localizados na
província, não por serem os menos empresarialmente apetecidos, mas sim porque
fazem parte integrante do Património Cultural Português e contribuem para a
afirmação identitária de um Portugal uno, coeso e territorialmente solidário,
como deve ser num País democrático, moderno e solidário.
Em suma, acho um enorme erro
político, conceptual e até mesmo estratégico, as transferências que já foram
feitas (Museus de Aveiro, da Guarda e de Castelo Branco), das que se preparam
para ser feitas (e que me escuso aqui de nomear) e do “elitismo serôdio”
subjacente que sobrará como indevido benefício para as instituições
museológicas que se vão manter na esfera tutelar da administração central.
Tanto se critica a desertificação
do interior que até começamos a acreditar que alguma coisa em concreto vai ser
feita, e depois assistimos à feitura do exactamente contrário ao que deve ser
feito para travar tal desertificação – extinguimos serviços e desqualificamos
instituições em nome de umas irrelevantes e absolutamente negligenciáveis
poupanças que, se analisarmos correctamente, estou em crer que nem nisso
resultarão…!
Como apontamento final,
sublinharia que as reservas enunciadas pelo Senhor Presidente da República são
muito bem vindas, dada a pertinência das mesmas, e que estão muito bem explanadas
em quatro pontos da nota divulgada no site da Presidência. Mas tenho para mim
que, se as dúvidas que eu tenho relativas ao sector da cultura forem idênticas
ou muito próximas às que outros possam ter nos respectivos sectores de
actividade pública, então melhor teria sido que esta Lei fosse, pura e
simplesmente, vetada.
Agostinho Ribeiro
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