O projeto de decreto lei que agora foi tornado público, para um novo regime jurídico de autonomia de gestão dos museus do Estado, já mereceu as devidas e pertinentes considerações críticas por parte do ICOM Portugal e Europa, considerações estas que eu partilho integralmente.
Aqui pode ler o projeto de decreto lei e o comunicado do ICOM Portugal e Europa, para assim melhor acompanhar o meu raciocínio crítico, que não posso deixar de formular publicamente:
http://icom-portugal.org/2018/07/27/comunicado-icom-portugal-e-icom-europa-projeto-de-decreto-lei-novo-regime-de-autonomia-de-gestao/
Pretendo com este texto proceder a uma análise crítica aos pontos mais sensíveis e negativos da proposta de diploma, sem prejuízo de elencar também o que considero de mais positivo no projeto. E começo extamente pelos aspetos positivos do diploma ou do que ele pode significar:
I – Os aspectos positivos
1º - Finalmente alguma iniciativa se começa a sentir no setor do património cultural, em especial dos museus, monumentos, palácios e sítios, porquanto a “marca de estilo” que estava a ficar sedimentada no espírito de muitos de nós (profissionais do setor) era a de que não se iria fazer rigorosamente nada na vigência do atual governo, ficando-nos por algumas meras palavras de circunstância em atos mais ou menos solenes da cultura. E esta “perceção” era absolutamente antagónica ao que se esperava da atuação do primeiro ministro, atentos que estivemos todos ao seu lúcido discurso pró-cultura do então candidato ao cargo. Esperemos apenas que isto não passe de mais uma mera encenação política, para a todos nos entreter, como já nos aconteceu por demasiadas vezes;
2º – É de saudar o conteúdo da nota preambular da proposta, devendo sublinhar que concordo em absoluto com o seu teor, que subscrevo sem hesitações. Está este texto estruturado de forma simples, mas certeiro no apontamento que faz às limitações e condicionalismos da atual situação legal, sobretudo face às injustiças flagrantes criadas pela legislação vigente. E relembra, muito bem, que existe legislação de enquadramento da política de proteção e valorização do património cultural: a Lei de Bases do Património Cultural e a Lei Quadro dos Museus. Ainda bem que o faz porque, precisamente, já muitos de nós começávamos a acreditar que ninguém com responsabilidades no setor tinha conhecimento destas mesmas leis;
3º – Apreciei, particularmente, a assertividade com que se refere à atualidade organizacional e funcional do setor, nomeadamente considerando que as últimas reformas da Administração Pública, “que extinguiram, concentraram e descentraram setores fundamentais da cultura” foram feitas “numa lógica de racionalização de meios que não permite uma política cultural que dê cabal cumprimento aos valores e princípios consagrados, quer na Constituição, quer na lei” sic. Ora eu não podia estar mais de acordo com estas afirmações, de cujos maus desenvolvimentos e resultados, aliás, tenho vindo a denunciar desde a primeira hora;
4º – Gostei da ênfase dada ao papel do diretor, “a quem serão delegadas competências para uma gestão responsável, que prime pela transparência e pelo cumprimento do quadro legal vigente e adequado às suas características, permitindo agilizar a operacionalização do seu plano de atividades”. Eu, confesso, não diria nem descreveria melhor a síntese do que penso ser o papel de um diretor, nos confusos tempos que correm;
5º – Do mesmo modo considero altamente positivo o facto de as comissões de serviço serem alargadas para períodos de 5 anos, com uma única possível renovação, num máximo de 10 anos de mandato. Sou completamente a favor, desde que não se faça o que tem vindo a ser feito, para desprestígio e vexame destes profissionais, e que é o de não se analisarem os respetivos relatórios, não renovando as comissões de serviço dos titulares apenas porque apetece ao diretor geral fazê-lo. E tudo isto ao arrepio da lei, em modesto entender, com o consentimento explícito dos decisores políticos, o que torna a situação muito mais grave e politicamente reprovável, como não pode deixar de ser considerado;
6º – Ainda em relação à responsabilidade gestionária do diretor, é muito bem vindo o concurso público internacional, abrindo as candidaturas a quem tenha habilitações específicas ligadas ao património cultural (e não apenas à gestão, pura e dura, de um qualquer serviço, como se isso bastasse para se garantir uma boa gestão destas instituições e entidades, dada a sua natureza especial), não se condicionando a candidatura à vinculação do candidato à Administração Pública e, com esta atitude, abrindo consideravelmente o leque de prováveis boas candidaturas aos lugares. Absolutamente de acordo;
7º – Concluindo com a possibilidade de se estabelecerem contratos plurianuais de gestão, com a consignação de receitas, embora aqui com enormes dúvidas sobra a viabilidade da sua transposição regulamentar, já porque a descrição das receitas consignadas a cada instituição (ou grupo de instituições) não vem acompanhada de nenhum articulado corretivo de assimetrias; já porque a administração pública, neste setor específico da cultura, está infinitamente incapacitada para fazer face a estas novas competências, devido à enorme escassez (endémica) de recursos humanos.
Estes são os aspetos mais positivos e relevantes que encontro nesta proposta.
II – Os aspectos negativos
Já quanto aos aspectos negativos, eles podem sintetizar-se numa grande injustiça, objectivamente mensurável – o estabelecimento de unidades orgânicas compósitas - a partir do qual todos os pontos negativos se equacionam, como segue:
1º – Resulta desta proposta de estruturação a continuação estatutária de uma indevida hierarquização dos museus, segundo categorias muito mal explicadas e ainda menos fundamentadas, que eu resumiria da seguinte forma: os museus de 1ª categoria (grupos de museus com monumentos e/ou palácios associados, cujo estatuto de diretor é equiparado a subdiretor geral com diretor adjunto); museus de 2ª categoria (grupo de museus com monumentos e/ou palácios associados, em tudo igual ao anterior, mas cujo estatuto de diretor é equiparado a subdiretor geral sem diretor adjunto); museus de 3ª categoria (museus nacionais, com diretor equiparado a diretor de serviços); museus de 4ª categoria (museus não nacionais, com diretor equiparado a chefe de divisão); e um solitário museu de 5ª e última categoria (museu que, embora tenha sob sua jurisdição gestionária o maior número de monumentos em todo o território nacional, e portanto deveria ter um diretor equiparado a subdiretor geral com diretor adjunto, terá apenas um diretor equiparado a chefe de divisão. Este museu é o de Lamego, que assim fica como sendo o mais penalizado e prejudicado de todos, vá-se lá saber porquê...!?);
2º – Devemos realçar que as designadas unidades orgânicas compósitas estão constituídas, segundo a explicação inscrita na própria proposta de diploma, por critérios observáveis, como sejam as afinidades patrimoniais, a dimensão equilibrada e racional de cada unidade, a eficácia e eficiência da gestão financeira, a eficácia e eficiência da gestão de recursos humanos e, finalmente, a proximidade geográfica. Ora acontece que todas as unidades orgânicas, sem exceção, apenas estão constituídas segundo o critério da proximidade geográfica, porquanto os restantes não são, pura e simplesmente, compagináveis com os agrupamentos propostos;
3º- De facto, não vislumbramos nenhumas afinidades patrimoniais, nem quaisquer outras mais, nas relações que o artigo 7º da proposta contempla, à exceção da primeira ali considerada (Museu Nacional de Arte Antiga e Casa Museu Anastácio Gonçalves, ainda que a possamos considerar algo forçada, admissível devido ao histórico das relações entre estas duas instituições).
E aqui convém abrir um parêntesis para referir que esta confusão conceptual, ao misturar indevidamente museus, monumentos e palácios como se de uma única espécie de serviços se tratasse, peca logo por dois grandes pecados capitais:
a) Em primeiro lugar o facto de se considerarem, todos, como meros “serviços” da administração pública. Ora um museu, um palácio ou um monumento não são meros serviços, tipo repartição de finanças ou loja do cidadão, que em qualquer edificado se pode instalar... Não, um museu é uma INSTITUIÇÃO patrimonial, por definição legal, como os palácios ou monumentos são ESTRUTRAS patrimoniais, sendo que as instituições e estruturas do património nacional são todas elas (ou podem ser) serviços, mas nem todos os serviços da administração pública se podem considerar INSTITUIÇÕES ou ESTRUTURAS do património nacional, como estes são.
b) Portanto, quando se reduz tudo a lógicas de unidades orgânicas, simples ou compósitas, não precavendo nem respeitando as identidades próprias de cada uma, segundo as diversas qualidades que lhes são próprias (desde o simbolismo patrimonial ao valor histórico e artístico dos acervos, passando pela importância dos mesmos nos territórios onde estão localizados), podem cair na tentação (como de facto caem neste caso concreto) de estruturar um modelo a partir de uma determinada centralidade, no caso Lisboa, criando hierarquias indevidas a partir de modelos mentais centralistas.
c) Por isto mesmo é que esta proposta consegue ser e criar, ironia das ironias, um resultado que pensamos ser exatamente oposto ao que supostamente pretende alcançar. Olhando para o que referi no ponto 1º deste capítulo, facilmente percebemos a perversidade do modelo: as unidades orgânicas da 1ª categoria situam-se em Lisboa; as de 2ª categoria localizam-se no norte litoral; as de 3ª categoria reforçam a capitalidade por estarem maioritariamente também em Lisboa; deixando as de 4ª e 5ª categoria para o resto do território nacional (sobretudo o interior norte).
d) Com a agravante de podermos constatar que as unidades orgânicas compósitas se agruparem por unidades simples sem quaisquer afinidades patrimoniais, nem tão pouco temáticas na maior parte dos casos. Se misturar o MNAA com a CMAG pode ser entendido como um mal menor aceitável, já tal mistura no que concerne ao Museu Nacional de Arqueologia com o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, é solução que não me parece que tenha qualquer lógica ou fundamento. A especificidade temática do Museu de Arqueologia é tal que não se compadece com tal solução administrativa, para além de (sublinho sempre que puder) desrespeitar a Lei Quadro dos Museus.
e) Do mesmo modo, a norte, colocar o Museu D. Diogo de Sousa, o Museu dos Biscainhos e o Mosteiro de São Martinho de Tibães no mesmo agrupamento compósito é o mesmo que colocar um serviço de finanças, uma esquadra de polícia e uma unidade de saúde familiar a serem dirigidos por um mesmo e só diretor, porque o agente da polícia sempre pode fazer uma “perninha” como enfermeiro e, quem sabe, também ajuda à resolução dos problemas causados por incumpridores do fisco...
f) Mas quando os fautores administrativos reduzem tudo a lógicas de serviços administrativos, não cuidando de perceber que para além de serem unidades orgânicas (que não podem deixar de ser, já bem o sabemos), os museus, monumentos, palácios e sítios são muito mais que isso, e que cada um deles carrega especificidades tais que não podem nem devem ser misturadas, então tudo é possível e tudo vai continuar na mesma, como até agora tem sido. E não tem sido bom, como todos sabemos.
4º – No resto, e tirando os casos “aceitáveis” dos agrupamentos considerados nas alíneas a) Museu Nacional de Arte Antiga e Casa Museu Anastácio Gonçalves, se considerarmos que esta Casa passa a ser uma “extensão” do MNAA, e da alínea c) Museu Nacional dos Coches e Picadeiro Real, tudo o mais atenta contra a Lei Quadro dos Museus, exatamente a mesma que o legislador diz dever ser respeitada na nota preambular...
5º - Em alternativa, sugeriria que se cumprisse a referida Lei, colocando um diretor em cada MUSEU, podendo agrupar o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, por um lado, e o Paço dos Duques de Bragança ao Castelo de Guimarães (e neste último caso com alguma reserva mental da minha parte), por outro. Em tudo o mais, as instituições museológicas e as estruturas patrimoniais consideradas devem, cada uma, ter um diretor que a ela se dedique em exclusividade de funções, nos termos de uma gestão por objetivos, com contrato programático plurianual, como muito bem se propõe neste documento, respeitando, além do mais, a legislação em vigor.
Que bom que seria se assim fosse realmente!
Pareceu-me ouvir, recentemente, alguns responsáveis governamentais (incluindo o primeiro-ministro) referirem a necessidade de se tomarem medidas corretivas para captação de quadros humanos para o interior, favorecendo a mobilidade e premiando os que optassem por se deslocar para serviços do interior do País. Ora esta formulação legal, neste setor tão especial e melindroso da cultura e da valorização e salvaguarda do nosso património histórico e artístico, parece rumar exatamente em sentido oposto, favorecendo as entidades que se localizam na capital e nos maiores centros urbanos e, penalizando, ao invés, os que deveriam ser mais favorecidos.
É injusto, e esta proposta não condiz com tais declarações políticas que foram, para mim, muito bem vindas.
III – O grave “caso” do Museu de Lamego
Para quem tiver dúvidas sobre a importância do Museu de Lamego, no plano patrimonial e museológico nacional, referiria com brevidade e singeleza o seguinte:
1º- O Museu de Lamego é uma importante instituição patrimonial secular, que possui um acervo e uma história invejáveis. Senão vejamos:
a) Possui o conjunto retabular representativo das primeiras obras documentalmente comprovadas como sendo da autoria do maior pintor do pré-renascimento e renascimento português, o pintor Vasco Fernandes, conhecido por Grão Vasco;
b) Possui a maior e melhor coleção do Estado de tapeçarias flamengas do período renascentista, especificamente do 1º quartel do século XVI;
c) Possui um conjunto de painéis de azulejos provenientes do Palácio Valmor, por decisão testamentária, considerado como uns dos melhores exemplares da policromia azulejar do país;
d) Possui excelentes coleções de ourivesaria, de capelas e altares provenientes do extinto Convento das Chagas de Lamego, pintura, paramentaria e mobiliário, arqueologia e escultura, em tudo fazendo deste museu um dos grandes representantes artísticos da arte portuguesa em períodos alargados da nossa História, e que vão do século I a.C. ao século XVIII, com especial destaque para o período renascentista, por força da exemplaridade das obras que possui, já acima referidas.
2º - Para termos uma ideia do imenso valor artístico e patrimonial deste museu, bastará referir que é o 8º museu do Estado com mais Tesouros Nacionais, isto é, de bens móveis classificados como de especial interesse público e, por tal, sujeitos a medidas especiais de proteção, sendo mesmo o 5º, se excluirmos os museus com especificidade temática, como os Museus de Arqueologia, do Azulejo e dos Coches. Dificilmente se encontra no interior de Portugal, um museu com tal acervo, ombreando com os já reconhecidos museus nacionais de Viseu (Museu Nacional de Grão Vasco) e Évora (Museu Nacional de Frei Manuel do Cenáculo).
3º – Acresce ainda que, atualmente, o Museu de Lamego tem sob sua jurisdição gestionária (no âmbito da Direção Regional de Cultura do Norte, que o tutela) os seguintes monumentos nacionais: Capela de São Pedro de Balsemão, Mosteiro de São João de Tarouca e Mosteiro de Salzedas, bem como o Imóvel de Interesse Público, a Igreja de Santo António de Ferreirim. É, portanto, o Museu do Estado que mais estruturas patrimoniais tem sob sua alçada gestionária, por razões de proximidade geográfica, ou seja, pelas mesmíssimas razões que levam à constituição das unidades orgânicas compósitas dos restantes agrupamentos propostos.
4º – Perante um Museu que, segundo a metodologia proposta de organização gestionária, deveria ser uma unidade orgânica compósita, por ser o museu que mais estruturas patrimoniais tem sob sua jurisdição e, como tal, deveria ser dirigido por um diretor equiparado a dirigente superior de 2º grau, com um subdiretor equiparado a diretor de serviços, para sermos justos e igualitários, verificamos que continuará a ser dirigido por um chefe de divisão, sendo certo que da forma como está estruturada a orgânica da Direção Regional de Cultura do Norte (de forma mais formal ou informal), vai ter mesmo que continuar a ser o responsável de proximidade de todas estas estruturas patrimoniais que não são apenas da região, são de Portugal!
Pior não podia ser... Mas ainda vamos a tempo de corrigir alguns dos aspectos menos justos desta proposta. Queiram os responsáveis políticos fazê-lo!
Agostinho Ribeiro
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