De Aquilino Ribeiro sei o que a
maior parte dos portugueses, de uma maneira geral, sabem. Menos do que deveria,
portanto. E tanto de Aquilino Ribeiro como de todos os outros escritores
portugueses, clássicos ou não, integrados já no imaginário literário nacional,
ou ainda à espera de um reconhecimento mais consistente, confesso as minhas
limitações e penitencio-me por elas.
Dito isto, sinto-me mais
tranquilo em escrever algumas generalidades sobre um texto de uma das personalidades
que mais me marcou no tempo fabular em que eu consumia livros até à exaustão,
como agora o faço no consumo desregrado da informação rápida, fácil e acessível
(ainda que por vezes pouco fiável), por via da internet.
Os tempos mudaram, não haja dúvida
nenhuma sobre isso, e isso nem sequer é dramático, como muitos pensam ser. Mas
há coisas que convinha preservarmos, como outras há que mesmo sem disso nos
darmos conta já existiam no tempo dos que hoje achamos velhos, como se a
verdadeira culpa de o sermos, ou de os outros assim considerarmos, fosse do
tempo, e não de nós. Não sei porquê, mas dou comigo a pensar bastas vezes sobre
quem será mais velho: se um jovem que não faz uma pálida ideia de quem foi
Aquilino, ou Torga, ou Camilo, ou Eça, ou Camões, ou Pessoa…, ou um qualquer “velho”,
como eu, na dificuldade tacanha que tenho em enfrentar e dominar um smartphone que insiste em ser tão meu
adversário no uso que dele teimo em pretender dar; ou como aliado servil
doutrem, odioso para mim (roído de inveja), nos dedos desses jovens que nem
para ele precisam de olhar, quando o manuseiam com o à vontade da escrita fácil
e abreviada dos “kapas”. Mas é um pensamento mentiroso, e até mesmo
intelectualmente desonesto da minha parte, mea-culpa,
porque não me sinto velho, embora pressinta que muitos jovens me olham como se
o fosse, e eu, sorrindo interiormente, percebendo perfeitamente porque assim me
olham, já que tenho memória, e ainda me lembro bem de como olhava eu, na minha
infinita impreparação para a vida, os que então não andariam longe da idade que
hoje me traz vivo.
Adiante, que de lamúrias não se
faz história, e muito menos se faz conhecimento, como naquele dia em que uma
das senhoras conservadoras do nosso museu, a Dr.ª Graça Marcelino, responsável
pela biblioteca e arquivo, me fez chegar gentilmente às mãos, ufana, uma cópia
de um escrito de Aquilino Ribeiro, no velho Almanaque Bertrand de 1937, a
propósito, precisamente, do Museu Grão Vasco. Assim mesmo, sem outra qualquer
denominação de Museu, regional que fosse pela construção preambular do diploma
legal que o fundou, e que por essa altura fazia a designação oficial do Museu;
nem tão pouco sequer com a preposição “de”, que perdurou quase até à atualidade
na legenda titular que o identificava. Não por mero acaso, certamente, mas
propositadamente, Aquilino Ribeiro não esteve com meias medidas, como tantas
outras vezes também não esteve, e escarrapachou o título que lhe servia na
perfeição à intenção do escrito, simples e direto – O Museu Grão Vasco!
O homem era mesmo levado do tal
que emprestou o nome à terra onde nasceu, e percebe-se o desígnio das tergiversações
iniciais, como que a preparar os incautos leitores para a visão da ferida que
ele haveria de tocar ao fim. Mas lá iremos quando a linha de pensamento aportar
no que me traz à pretensão judiciosa destas linhas… A verdade é que andava eu
embrenhado nuns arremedos de ideias a propósito do encontro sobre o centro
histórico de Viseu, na insana preocupação de pretender dizer em escassíssimos
minutos o que um qualquer ser minimamente consciente sabe não poder fazer devidamente
numa comunicação séria, estruturada, com princípio, meio e fim, quando a
senhora conservadora, salvífica, me brinda com aquele delicioso texto, tão
aquiliano quanto Aquilino sabia ser.
Salvífica, porque me permitiu
usar um poderosíssimo argumento a favor do que verdadeiramente me motivava para
aquela breve intervenção, já que poderia partilhar com todos uma pretensão que
nem sequer era nova no desejo de a concretizar – a ideia de que o Museu Grão
Vasco era tão importante, enquanto instituição museológica, como excelente na valia
do seu acervo, que não o designar com o título “nacional” era, no mínimo, um deselegante
desrespeito à extraordinária qualidade da instituição.
Aquilino sabia do que escrevia e,
além do mais, sabia perfeitamente como alcançar o objetivo da sua escrita,
tendo em atenção as circunstâncias do tema, do tempo e até mesmo do lugar. O
texto é singular, na medida em que parte de uma consideração geral a propósito
da visita de Raczynski a Viseu, em tom muito próximo do coloquial, para de
seguida se centrar no Museu Grão Vasco e no que, de facto, o levou à sua
escrita. A propósito do devaneio “raczynskiano” pelas terras beirãs, tece então
sentenciosas considerações de uma não disfarçada incomodidade pelo que ainda
não estava resolvido no “casco” antigo da cidade. E passa, de seguida, à
fundação do Museu. Tudo isto sem deixar de enquadrar o fenómeno, de inspiração
republicana, “no movimento que teve em José de Figueiredo um dos primeiros
impulsores”, a que acrescentou, sem pestanejar, que tal movimento “consistia em
criar em Portugal o gosto da arte e cada cidade ir arrecadando convenientemente
o que, no seu âmbito, se recomendava pela beleza, carácter, cunho histórico”
.
Já, por várias vezes e em
diversos textos meus, enfatizei estes princípios fundamentais de base
republicana, que levaram à edificação de alguns museus espalhados pelo todo do
território nacional
. A Primeira República foi
responsável pela instituição de 13 museus, entre 1912 e 1924, o que nos dá bem
conta da preocupação e do afã em construir o que agora designamos, pomposamente
e bem, uma rede de museus, cuja missão era a de salvaguardar e valorizar o que
de mais precioso existia em Portugal.
Mas temo que haja por cá, precisamente
por Portugal, muita boa gente que, propositadamente ou não, pretenda continuar
a confundir a constituição de uma rede de museus harmoniosamente distribuídos
pelo todo do território nacional, para elevar a cultura nacional por via da
“educação do povo” e da salvaguarda e valorização do património artístico português
(os tais princípios muito genéricos, velhinhos, dos republicanos de boa cepa),
com a construção de museus regionais no sentido restritivo do termo, que o
mesmo é dizer, museus que representam uma parcela constrita do território, cuja
valia do acervo não alcança o patamar da importância e visibilidade nacionais
e, como tal, apenas se deve confinar ao local ou, quando muito, à região onde
está instalado… Importantes, sem dúvida alguma, mas outros que não estes que
estiveram na base da construção da nossa história e tessitura museológicas. E,
por via desta ínvia pretensão, abdicarem pura e simplesmente das suas
obrigações constitucionais, transferindo as tutelas destas instituições para
setores da administração pública mais consentâneas com a natureza “regional” ou
“local” destes museus. A confusão teórica é consciente e propositada, porque
serve a intenção das desqualificações orgânicas e funcionais, a pretexto de um
argumentário baseado em dados quantitativos indevidamente analisados e
incorrectamente apresentados à opinião pública nacional.
É curioso constatar então, que afinal
nem o problema é de hoje, nem as soluções são tão inovadoras como nos querem
alguns fazer crer… Aquilino Ribeiro, em 1937, apercebeu-se muito bem desse
logro em que nos quiseram fazer cair, porque ao escrever este aparentemente
inofensivo texto, nada mais estava a fazer do que a criticar asperamente o
elitismo despropositado, muito típico do complexo provinciano de que a capital
nos dá, amiúde, sinais de possuir (e exercitar). Para além de outras razões de
natureza ideológica, que não temos espaço, agora, para tratar, e que se prendem
com a postura intelectual e política de alguns membros do 7º Governo da
ditadura, nomeadamente de Gustavo Cordeiro Ramos, Ministro da Instrução Pública
ao tempo da produção do documento legislativo que esteve, seguramente, na
origem do texto que Aquilino Ribeiro escreveu.
Refere ele o seguinte, já em fase
de arrematação: “O que é o Museu Grão Vasco? O Museu Grão Vasco não é Viseu;
não é Beira. É Portugal. Mais que Portugal é o mundo, pois que a arte tem
feição ecuménica. Regional é o apenas no rótulo que oficialmente lhe deram. De
facto, museu regional implica arte regional, arte particular,
sui generis. Em país uno, indiviso, nada
de nada compósito como o nosso, poderá florir esta planta? Ainda que se
confinasse no papel de repositório etnográfico, à parte a explicação que lhe
poderia trazer a geografia, seria coisa impossível.”
O que pode parecer, à
primeira vista, um despropósito de consideração, mesmo porque já se vivia num
tempo em que ninguém teria coragem de por em causa a valia do património
artístico ínsito ao Museu Grão Vasco, é facilmente explicado à luz do diploma
legal então em vigor, e que tinha estruturado os museus portugueses em três
grupos – nacionais, regionais e, simplesmente, “
museus, museus municipais, tesouros de arte sacra e outras mais
colecções oferecendo valor artístico, histórico ou arqueológico.”
É claro que o Museu Grão
Vasco estava incluído no segundo grupo, e era essa precisa constatação que motivou,
e explica, o conteúdo do texto agora em evidência.
Era, certamente, contra esta
organização tipológica desprovida de sentido (técnico, científico e até mesmo
ideológico) que Aquilino afinou o intelecto e, no uso seguro do seu bisturi,
delimitou o campo da intervenção cirúrgica para conter a doença que propagaram
a estes museus, pela introdução de níveis diferenciadores onde havia
semelhanças, pela marcação de alteridades onde havia similitudes, fazendo
então, nos idos dos anos trinta do século passado, o que agora se está a tentar
fazer de novo… e agora, de forma ainda mais imprudente, não perscrutando o
pensamento dos mais insignes museólogos portugueses, perdidos que andamos na
inexistência de outros “Aquilinos” que, no tempo certo, nos soubessem usar o
peso da sua personalidade e o poder da palavra que produzem, para defender a
razoabilidade e a racionalidade na alteração ao modelo vigente, que se vê cada
vez mais próximo dos idos de 1937, com a agravante de as diferenças serem ainda
mais gravosas do que então…
Infelizmente, Aquilino Ribeiro já
não pôde observar a primeira grande alteração conceptual que se produziu na
classificação dos nossos museus, depois do célebre decreto que invetivou. Isto
porque foi apenas dois anos após a sua morte que, por força da publicação do importante
Regulamento Geral dos Museus de Arte, História e Arqueologia, em 1965
(resultado seguro dos
inestimáveis contributos de João Couto para a causa da museologia nacional), se
iniciaram profundas alterações que haveriam de construir um corpo teórico
consistente, e uma práxis consentânea (ainda que com muitas lacunas, erros
pontuais, avanços e recuos) até 2011, finalmente interrompido com as últimas alterações
legislativas do sector, em 2012, que, como se pode facilmente demonstrar,
promovem o retorno (e a regressão) ao modelo criticado por Aquilino Ribeiro.
“Percorrer as salas do Museu Grão
Vasco, tão inteligentemente alfaiadas (…) é sentir-se, diríamos, em boa e
afamada galeria europeia. Depois das Janelas
Verdes é do melhor que se pode apontar a dedo.”
Pelos vistos, defendemos em 2014
exatamente o mesmo que Aquilino Ribeiro já defendia em 1937, como se o tempo,
afinal, não tivesse tido tempo de mudar as velhas ideias de uma forma tão
consistente e estruturante, que as entendêssemos completamente sedimentadas no
coletivo das elites intelectuais portuguesas e, por via disso, fossem essas
mesmas velhas ideias coisas do passado, mortas e enterradas, apenas recordadas
por nós como interessante tema de discurso e abordagem historicistas, e não
questões da contemporaneidade que nos obrigam a tentar perceber o que correu
mal, nos últimos 49 anos desta nossa existência museológica, em Portugal.
Ou não (não correu mal), e apenas
estamos a manusear agilmente o telefone que se diz ser inteligente, pensando
nós que isso nos basta para sermos vistos como génios criativos e inovadores,
prontos para as grandes mudanças de paradigma que a sociedade moderna nos exige
promover, apontando caminhos que, afinal, mais não são que trilhos antigos há
muito abandonados… Basta ler algumas coisas de Aquilino Ribeiro, e de outros
como ele, para ficarmos com essa certeza.
Agostinho Ribeiro
Viseu, 31 de Julho de 2014.
* Publicado nos Cadernos Aquilinianos, nº 22, Série 3, CEAR (Centro de Estudos Aquilino Ribeiro), Pgs. 83-88, 2014.