domingo, 14 de setembro de 2014

Museu Grão Vasco, fonte inspiradora *



Do motivo inspirador.

VISIBILA é um projeto criativo que resulta da interação estabelecida entre a artista plástica Ema M. e algumas obras do Museu Grão Vasco que, pela sua própria natureza ou por razões exógenas à sua valia, menos visibilidade possuem no discurso expositivo do museu, habitando, por agora, as suas reservas. Mas não são obras indiferenciadas ou atípicas. Tão pouco são obras sem merecimento para serem expostas em permanência. Apenas se não enquadram totalmente no discurso expositivo, de essência museológica, assumido pela instituição ou, por razões ainda mais prosaicas, por não estarem nas devidas condições de apresentação ao público, pelo menos em quantidade suficiente que justifique uma alteração substantiva ao referido discurso.
Mas o elemento diferenciador, e certamente o mais decisivo, dos modelos inspiradores da artista é, sem dúvida, o da sua específica tipologia - o retrato. A artista parte de alguns retratos de personagens mais ou menos conhecidos, existentes no museu, e em particular dos retratos de D. João VI e de D. Carlota Joaquina de Bourbon, ambos de autores desconhecidos, para construir um notável conjunto pictórico que é, ao mesmo tempo, memorial e arte, história e lenda, materialidade e imaterialidade, como se de uma narrativa real e fantasiosa, a um tempo, se tratasse. E trata.

Da obra realizada.

E assim chegamos ao conjunto harmonioso que dá corpo à presente exposição – setenta e sete obras notáveis que, num primeiro relance, nos levaria a considerar como sendo os retratos de todos os reis e rainhas de Portugal, que são. Mas não só. Porque são mais que isso e, sobretudo, são criações diversas da tipologia comummente adotada para as classificar, no nosso sempre tão estranho, quanto impulsivo, afã de tentar meter todas as coisas nas caixas certas que se encontram depositadas no lado mais lógico e racional do nosso pensamento. Mas é compreensível que assim seja, porque faz parte da nossa natureza fazê-lo, na tentativa permanente, e quantas vezes inconsciente, de sobrepor alguma ordem e harmonia ao caos provocado pela infinidade de sensações e perceções que o nosso intelecto vai absorvendo ao longo das horas, dos dias, dos anos de uma vida…
Retratos que não são retratos, já que são rostos propositadamente fantasmais, aqueles que se nos apresentam pela frente e, no entanto, encontramos neles os traços identitários da personagem representada, não suscitando qualquer dúvida sobre a identidade individual de cada rei ou rainha, numa singularidade escrupulosamente demarcada, mas que só possui a plena razão da sua existência no contexto global do coletivo simbolizado. Vale por si, porque é retrato, mas só se explica plenamente, porque é obra de arte integrante de um conjunto criativo e original que ultrapassa decisivamente as fronteiras das mais arcaicas definições concetuais.
Esta irreverente forma de ser uma coisa e, depois, ser ainda mais qualquer coisa que essa coisa que se é, procurando ser múltiplo no potencial discurso interpretativo, faz-nos pensar nos motivos, ou melhor, nos mecanismos intelectuais que estiveram na base da construção deste projeto artístico. A marca impositiva é a da dicotomia, no sentido da lógica, enquanto modelo de abrangência agregadora de duas partes concorrentes para a unidade, mais que no sentido da oposição, que não existe, nessas duplicidades propositadamente construídas, e muito bem, pela artista.
É que, curiosamente, Ema M. trata sempre o simbólico na base das cumplicidades dicotómicas que poderíamos avocar à exaustão, ficando-nos aqui pela mais evidente: são retratos reais, da realeza portuguesa, onde precisamente todas as rainhas se encontram também figuradas - reis e rainhas, masculino e feminino, não em oposição mas em complementaridade natural, o que dá uma consistência inaudita ao conjunto realizado.

Da museologia à museografia.

Do ponto de vista museológico, a particularidade deste projeto, ainda na linha da dicotomia congregadora (e não opositora), reside no facto de o Museu Grão Vasco poder apresentar ao público uma obra independente, original e única, mas feita a partir da feliz inspiração da autora, Ema M., em obras de arte do próprio museu. Algumas delas, aliás, patentes na própria exposição. O Museu assume-se aqui como fazendo parte integrante e indissociável do próprio ato criativo, por intermédio de um prévio estudo e apreciação de Ema M. que, confrontada com as diversas fontes artísticas inspiradoras, se sentiu impelida à materialização dos seus impulsos criativos. Como só os artistas sabem e podem fazer…
Mas ao optar pelos retratos (que já sabemos que o não são apenas), de todos os reis e rainhas de Portugal, e da forma como o fez, a artista introduziu algumas mais-valias museológicas que não podemos deixar de referir aqui: desde logo o valor pedagógico da coleção exposta, ao dar visibilidade a aspetos muito concretos da nossa História, apresentando pequenos detalhes que escapam ao conhecimento atual de muitos visitantes. Referimo-nos, em concreto, à identificação das personagens em causa, em forma criativa e simbólica, certamente, mas ainda assim complementada com dados concretos que ajudam à perceção do todo – os anos de cada reinado; os cognomes dos reis; as respetivas consortes; a sucessão cronológica das dinastias, matizadas em diversas colorações; tudo conferindo uma linearidade natural ao próprio discurso expositivo.
Também por isto, a museografia desta exposição é extremamente simples, tão simples quanto original e apelativa, uma vez que as legendas substituem com vantagem as tabelas informativas e o percurso da visita pode ser feito em ambos os sentidos que, espacialmente, delimitam o campo expositivo. Depende apenas do nosso particular interesse na abordagem cronológica do tema, iniciando a visita pelo Condado Portucalense, nas figuras tutelares de D. Henrique e de D. Teresa de Leão e Castela ou, ao invés, pela Quarta Dinastia, apreciando os retratos de D. Manuel II e de D. Augusta Vitória de Hohenzollern-Sigmaringen.
A escolha é nossa.
O Museu Grão Vasco tem todo o gosto em apresentar ao público esta exposição de Ema M., VISIBILIA, à qual está indissoluvelmente ligado por ter sido a fonte inspiradora de tão impressivo, belo e original trabalho criativo, e por intermédio da qual também pretende dar maior visibilidade às suas coleções.
Agostinho Ribeiro
Diretor do Museu Grão Vasco
14 de setembro de 2014.


* In Catálogo da exposição “Visibilia, de Ema M”, Museu Grão Vasco, Viseu, 2014.

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