quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Architektur ist geiselnahme *.


*A Arquitectura faz reféns.



João Figueiredo, Antropólogo e Bolseiro de Investigação da Fundação para a Ciência  e Tecnologia, decidiu, em boa hora, dar um contributo importante para a discussão pública em torno da problemática da obra do Eixo Barroco da cidade de Lamego. Fê-lo num artigo de opinião deveras interessante, e baseado em fundamentos conceptual e historicamente válidos, ainda que discutíveis[1].

Temos, pela primeira vez, alguém que se oferece para discutir esta problemática com base em argumentos providos de seriedade histórica, embora generalistas, constituindo o seu contraditório um exercício que ultrapassa a mera circunstância do gosto efémero que a moda nos confere, para se alcandorar à postura mais elevada de uma dialéctica conceptual, que se não esgota no básico ser “a favor” ou ser “contra” esta obra, por meras razões de alinhamentos político-partidários, como tem acontecido até ao momento por parte da maioria dos que se posicionam a seu favor.
Só por isto felicito o autor do artigo, que penso não conhecer pessoalmente, e agradeço-lhe a sua produção, pela riqueza de conteúdo que traz à discussão pública da questão.

Sem embargo, as minhas discordâncias sobre a tese apresentada são profundas, e baseiam-se numa diferente análise e interpretação dos testemunhos históricos chamados à colação para fundamentar, ou melhor, justificar a opção pela execução da obra, pelo menos a um nível idêntico à razão que reconhece (e muito bem) existir por parte dos que, como eu, não concorda com ela.

Desde logo porque o adágio da “catedral que nunca acaba de ser construída” não traduzia um conceito arquitectónico puro e original, tanto quanto o consigo interpretar. Traduz antes, em modesto entender, uma sublimação espiritual tardia, mais no sentido da ecclesia original do que no fundamento da edificação física da igreja. É a construção da Igreja de Deus que nunca acaba, porque é tarefa inacabável, depois vertida na materialidade das sucessivas necessidades de adaptação funcional dos edifícios, construindo-se assim uma lógica discursiva, simbólica, entre o céu e a terra.
Aliás, se repararmos bem, a grande maioria das catedrais constituem, como também acontece na nossa Sé de Lamego, uma enciclopédia de estilos, precisamente pelo facto da maioria da construção nova surgir sobre, e em complemento à edificação primitiva. Com certeza que houve excepções, mas não é sobre excepções que podemos construir normativos. De facto esta não era a regra, porque a destruição do edificado só ocorria quando o mesmo já se encontrava em tal estado de degradação ou de desadequação às necessidades funcionais, que nada mais restava senão proceder à sua substituição.
Ora, construir reparando o existente e substituindo apenas o que já estava absolutamente inoperacional e obsoleto é coisa diversa, e muito diferente, da destruição do existente e construção nova sobre o destruído, sobretudo se o destruído ainda cumpre integralmente as suas funções...
Precisamente, Antoni Gaudi, um modernista sincrético, ou, como disse Antonio Llena, “um barroco, um romântico, um racionalista e, acima de tudo, um surrealista", não rogou que destruíssem o que ele tinha feito, mas antes que dessem continuidade ao que ele tinha feito, o que é, mais uma vez, substancialmente diverso do postulado defendido por alguns (que não o do autor do artigo, segundo creio) de que a contemporaneidade em arquitectura pode passar pela destruição pura e simples dos testemunhos edificados dos que nos antecederam, em nome da defesa da vida qualificada desses espaços urbanos.

Esta construção teórica, ainda que respeitável, é muito discutível, e leva erradamente à dedução de um suposto antagonismo entre a percepção dos espaços vivos e dos espaços-museu, depreendendo eu que o autor entende os espaços-museu como espaços mortos ou, pelo menos, bem menos vivos que os ditos.
Ora, também este antagonismo não aguenta o crivo de uma análise mais profunda, já que se baseia em determinados preconceitos intelectuais que não têm qualquer sustentabilidade, nem teórica, nem prática.
Em primeiro lugar, a “lógica conservacionista que dita as intervenções em espaços-museu” não é incompatível nem opositora a qualquer “ímpeto reformador” dos lugares da dita memória cívica. As reformas são necessárias e desejáveis, usando-se hoje o termo da requalificação para melhor as caracterizar e identificar. Não há, hoje em dia, nenhuma lógica “conservacionista” que defenda ou postule o imobilismo e a “não-inscrição” como opção. Pelo contrário, é hoje sabido por todos que conservar a memória material ou imaterial de um qualquer colectivo é um acto proactivo, vivo e dinâmico, e jamais um acto de condescendência com a inactividade e a omissão.

Este equívoco baseia-se na noção ultrapassada, incorrecta e despropositada, de que os museus são espaços mortos onde se depositam objectos, sem qualquer outro significado ou função que não seja os de os guardar e, como tal, sem importância para a vida das pessoas... Nada de mais errónea esta percepção, porque os museus nunca foram isso e, sobretudo hoje em dia, são precisamente o contrário disso! Basta estudarmos um pouco mais a história dos museus e a sua evolução, desde os primórdios à actualidade, para percebermos que essa noção não passa de um mito, baseado num conceito romantizado, muito circunscrito temporalmente, mas que fez escola e perdurou no imaginário dos mais desatentos à evolução dos museus no seio da(s) sociedade(s) que serve(m) [2].

Sendo eu um adepto fervoroso do conceito de que os espaços-museu são, por definição, espaços vivos, e não outra coisa qualquer, tenho dificuldade em interpretar e compreender o simbolismo da expressão architektur ist geiselnahme (a arquitectura faz reféns) fora do seu contexto preciso, tanto histórica como espacial, precisamente porque tal expressão decorre de algum radicalismo ideológico, interpretativo de marcas físicas que deveriam ficar (ou não) congeladas no imaginário de um povo marcado e dividido, como foi o povo alemão do século XX.

Entendo, portanto, desadequada a tentativa de estabelecimento de qualquer comparação de algo que não é comparável, nem à luz de uma ténue similitude formal (intervenção em espaços urbanos) que não tem qualquer outro ponto de aproximação pela distância formal e de conteúdo, bem como das circunstâncias históricas, que afastam as duas realidades.

Na verdade, no que respeita a Lamego, não me parece que haja alguém que se tivesse sentido a viver num museu, por usufruir e utilizar quotidianamente o espaço público que agora está a ser destruído e isso, pela simples razão de que o não era, sem quaisquer outras lucubrações intelectuais. Logo, nenhum lamecense se sentia, tanto quanto me pareceu ao longo dos últimos 38 anos em que aqui vivo, como refém fosse do que fosse, e muito menos condenado a viver num museu estático e inamovível.

Finalizaria com esta simples comparação, aproveitando a deixa do autor daquele interessante artigo - se quiséssemos transpor o rogo de Antoni Gaudi para a realidade do centro histórico de Lamego, respondendo positivamente à sua exortação, estaríamos agora a respeitar o existente, mas não a destruí-lo; estaríamos a contribuir para o enriquecimento do nosso centro urbano com melhorias acrescentadas ao edificado, mas não à substituição completa dos elementos fundamentais que o caracterizam e identificam como ex-libris de Lamego.

Enfim, se em Barcelona se fizesse na Basílica da Sagrada Família o mesmo que se está a fazer agora no centro urbano de Lamego, os barceloneses estariam a assistir à derrocada quase total da Basílica para, em sua substituição, se construir uma outra Basílica, ainda que com alguns elementos de memória da “antiga”. Tenho a certeza de que os barceloneses não iriam admitir, pura e simplesmente, tamanho crime de lesa património!

Foi contra isso que os “conservacionistas” lamecenses lutaram... e perderam.

Agostinho Ribeiro.




[1]Ainda sobre o desafio do eixo barroco em Lamego “, in Douro Hoje, nº 1200, Ano XXVI,  pág. 8, 27 de fevereiro de 2013.
[2] According to the ICOM Statutes, adopted during the 21st General Conference in Vienna, Austria, in 2007: A museum is a non-profit, permanent institution in the service of society and its development, open to the public, which acquires, conserves, researches, communicates and exhibits the tangible and intangible heritage of humanity and its environment for the purposes of education, study and enjoyment.
This definition is a reference in the international community.

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