Os autores das novas leis
orgânicas sobre a gestão pública do nosso património cultural, agora dividido
em geral e regionais, andam ufanos
com a obra que realizaram mas, em boa verdade, não deveriam
andar assim tão orgulhosos pelos disparates que fizeram, porque o que está
feito, no que aos museus diz respeito, está bastante mal feito em alguns aspectos fundamentais das orgânicas propostas e, além do mais, possui disposições que são ilegais. Senão vejamos:
I
A Lei Quadro dos Museus
Portugueses (Lei nº 47/2004, de 19 de Agosto), aprovada por unanimidade na
Assembleia da República define que um museu é uma instituição permanente, nos
termos seguintes:
“1 — Museu é uma instituição de
carácter permanente, com ou sem personalidade jurídica, sem fins
lucrativos, dotada de uma estrutura organizacional que lhe permite:
a) Garantir um destino unitário a um conjunto
de bens culturais e valorizá-los através da investigação, incorporação,
inventário, documentação, conservação, interpretação, exposição e divulgação,
com objectivos científicos, educativos e lúdicos;
b) Facultar acesso regular ao público e
fomentar a democratização da cultura, a promoção da pessoa e o desenvolvimento
da sociedade.”
Ora, sendo uma instituição de carácter permanente, não pode estar
sujeito a nenhum tipo de precariedade legal, na exclusiva dependência, a
todo o tempo, dos interesses conjunturais dos serviços tutelares, nos precisos termos
em que as novas disposições regulamentares agora o concebe.
Com efeito, e em modesto entender, estas novas leis são
inconstitucionalmente discricionárias, porque tratam de forma diversa entidades
públicas da mesma natureza, já que consideram que alguns museus são serviços
permanentes, e muito bem, e outros são unidades orgânicas flexíveis, ou seja, intrinsecamente precárias, o que para além de estar mal, é manifestamente ilegal. O Estado não pode tratar coisa igual de forma diferente e discriminatória.
Se atentarmos ao disposto nas
referidas Leis Orgânicas, os dois Decretos-Lei que definem a estrutura da nova
Direcção Geral do Património Cultural (Decreto-Lei nº 115/2012, de 25 de Maio)
e das quatro Direcções Regionais de Cultura (Decreto-Lei nº 114/2012, de 25 de
Maio) constatamos que consideram todos os Palácios e Museus como serviços
dependentes, sugerindo assim que todas as entidades museológicas do Estado
estariam organicamente configuradas no âmbito de uma mesma situação legal,
respeitando o princípio fundamental da igualdade das entidades que são, por
natureza, idênticas. São todos museus ou estruturas similares, que cumprem
objectivos gerais de igual natureza e âmbito conceptual. Nada a criticar aqui, em termos legais.
Acontece que, logo a seguir,
esbarramos com as duas Portarias que regulamentam as supracitadas Leis
Orgânicas (as Portarias nº 223/2012, de 24 de Julho, e a nº 227/2012 de 3 de
Agosto) e que dispõem que para as entidades dependentes da DGPC o Panteão
Nacional, o Museu Grão Vasco, o Museu Monográfico de Conímbriga e o Museu da
Música são unidades orgânicas flexíveis e, portanto, com uma configuração
orgânica e funcional substancialmente menor que as restantes entidades
museológicas, sem nenhuma razão ou fundamento técnico e/ou científico que o possa suportar.
Só que uma unidade orgânica
flexível corresponde à estruturação mais básica do edifício da administração
pública, dependendo legalmente do entendimento que a cada momento o dirigente
superior tiver sobre a existência, ou não, dessa mesma unidade orgânica.
Vejamos pois, a ilegalidade
grosseira desta Portaria, que consegue fazer tábua rasa de um Decreto-Lei, já
acima referido, e de uma Lei Quadro (a dos museus), para não falarmos já na
própria Constituição da República Portuguesa, o que nos levaria muito mais
longe no exercício deste contraditório.
O Estatuto do Pessoal Dirigente
(Lei nº 64/2011, de 22 de Dezembro) estabelece, no seu articulado, que os
dirigentes titulares dos cargos de direcção superior, têm competência para, e cito: “Organizar a estrutura interna do serviço ou
órgão, designadamente através da criação,
modificação ou extinção de unidades orgânicas flexíveis, e definir as
regras necessárias ao seu funcionamento, articulação e, quando existam, formas
de partilha de funções comuns;” (alínea f) do nº 1 do artigo 7º da
supracitada Lei).
Esta alínea expressa-nos claramente
que aquelas unidades orgânicas passaram a ser qualquer "coisa" no mundo do património cultural, mas deixaram obrigatoriamente de ser Museus, à luz de uma Lei Quadro da
República Portuguesa que define o que são verdadeiros museus, e não quaisquer aproximações grosseiras ao conceito legal. Portanto, uma entidade que pode ser modificada
ou extinta por mera decisão administrativa e de gestão de um qualquer titular
superior, não é, nem nunca será, legalmente, uma instituição de carácter permanente! Este carácter permanente, num regime democrático e de direito, não se garante pela convicção
de que nenhum dirigente superior modificará ou extinguirá qualquer museu, mas
sim pelo escrupuloso cumprimento e respeito pelo que está legislado sobre o assunto.
Não sou jurista e não percebo
nada de leis, mas tanto quanto me é dado saber, uma Portaria não pode
contrariar um Decreto-Lei e muito menos uma Lei Quadro. Logo, é ilegal, nulo e de nenhum efeito!
É evidente que, se para a
Portaria que regulamenta os museus que ficaram na dependência da Direcção Geral
esta constatação os coloca na ilegalidade, muito mais o é para a Portaria que
regulamenta os Museus que transitaram de tutela, já que nesta última, todos,
sem excepção, passaram a ser unidades orgânicas flexíveis, como podemos
verificar pela leitura do artigo 3º desta última Portaria.
II
Mas em modesto entender, as ilegalidades
destes dois diplomas vão mais longe, e por isso deveriam ser revogados
imediatamente, substituindo os articulados manifestamente ilegais por outros, mais consentâneos e respeitadores da Lei vigente.
Recorremos de novo à Lei Quadro
dos Museus, por ser a incompatibilidade desta, com os novos diplomas
regulamentares, a matéria que justifica estas minhas breves considerações.
Segundo a Lei Quadro citada, cada
Museu deve ter uma direcção própria (artigo 44º), por razões de tamanha
evidência que nem vale a pena aqui perder muito tempo a considerá-las. A
representação técnica, a direcção dos serviços para cumprimento das funções
museológicas, bem como a propositura, coordenação e execução dos planos anuais
de actividades não são, em qualquer museu, funções que possam ser asseguradas
em regime de tempo parcial.
São funções exigentes e solicitam
uma dedicação exclusiva, incompatível com a possibilidade de haver um director
para dois ou mais museus, alguns mesmo situados em localidades diferentes,
distando várias dezenas de quilómetros um do outro, ou para um museu e outras
entidades de natureza patrimonial próximas ou similares. É inaceitável, mesmo estando
situados numa mesma localidade, já que uma direcção desta natureza despreza a
especificidade de cada entidade e não respeita a igualdade de tratamento que o
Estado deve ter perante todas as entidades museológicas que tutela, por igual!
Se o conhecimento prático das coisas
nos permite asseverar tais incompatibilidades, já que eu próprio tive a experiência
de gerir dois museus em simultâneo, ainda que por razões muito específicas e
por um tempo limitado, estas incompatibilidades também o são legalmente, já que
não respeitam nem a letra nem o espírito da própria Lei, reforçando a
ilegalidade destes novos dispositivos legais.
Tirando Aveiro, nenhuma outra
cidade tomou uma posição pública de desagrado perante estas ilegalidades
cometidas, o que não deixa de ser inquietante para qualquer pessoa minimamente
informada. É relativamente fácil corrigir as principais ilegalidades aqui detectadas, e não é
necessário mudanças estruturais para o fazer. Basta haver maior sensibilidade e
atenção por parte dos actuais responsáveis pelo sector da cultura que, estou
certo, procederão às correcções indispensáveis.
Se assim não for, e perante estas duas razões de natureza legal, que acabei de referir, (ora só pela primeira, ora pelas duas) deixaram de poder ser designados como Museus, à luz da lei portuguesa, os Museus do Abade de Baçal, em Bragança, de Terras de Miranda, de Aveiro, de Grão Vasco, em Viseu, o Monográfico de Conímbriga, de Lamego, da Guarda, de Évora, da Música e Panteão Nacional, em Lisboa, Museu dos Biscainhos e Museu D. Diogo de Sousa em Braga, Museu de Alberto Sampaio e Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães, Museu de Etnologia do Porto, Museu Etnográfico e Arqueológico Dr. Joaquim Manso, na Nazaré, da Cerâmica e José Malhoa, nas Caldas da Rainha, e o Museu de Francisco Tavares Proença Júnior, em Castelo Branco.
Nenhuma destas entidades públicas, em boa verdade, se pode hoje designar como Museu, se fôssemos rigorosos no respeito pelo que está legislado em Portugal.
Já no que toca ao retrocesso
organizacional, nas matérias apenas conceptuais (que não de legalidade duvidosa), como a questão da autonomia dos museus, capacidade de captação de receitas próprias, igualdade de tratamento e configuração orgânica e funcional, capacidade de planeamento próprio, rede de museus, etc., etc., já as coisas terão que ser resolvidas de uma forma mais demorada, reflectida e participada por todos, e não no total e completo silêncio e ausência de diálogo, como infelizmente foi
feito até aqui.
Tenho esperanças fundadas na
mudança de comportamentos, procedimentos e atitudes.
Estou certo de me não enganar.
Agostinho Ribeiro
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