quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

A Quadra Natalícia



Nesta época de Natal assistimos a um desdobramento de votos de felicidades e desejos partilhados de sucessos, de paz e harmonia, de todos para todos, espelhando, cremos nós, os sentimentos mais genuínos e profundos que caracterizam o lado bom que existe em todos os seres humanos.
Ninguém é insensível à época natalícia, e até mesmo os mais empedernidos e austeros concidadãos não escapam a esta áurea admirável que nos costuma enredar e embevecer, por estes dias de Natal.
Como sabemos, o Natal, enquanto festividade cristã comemorativa do nascimento de Jesus Cristo, foi instituída pelo bispo Libério, no ano de 354 d.C., fazendo coincidir esta memória com as festas pagãs que então se celebravam, por esta altura do Solstício de Inverno. Talvez a troca de presentes decorra desse ancestral hábito pagão, e que Roma soube sincretizar de forma prática e inteligente, incorporando alguns rituais pagãos no pujante cristianismo triunfante, que assim soube adaptar e adaptar-se às realidades então vigentes, dada a força mítica que muitos destes cultos gozavam no seio das gentes de então.
Seja como for, a verdade é que hoje o Natal ultrapassou de novo a componente exclusivamente religiosa, ainda presente e evidente nas nossas comunidades cristãs, mas agora para atingir o cúmulo do novo paganismo, a que prosaicamente designamos de consumismo. O mercado explora até à exaustão esta límpida e eclética fusão das antiquíssimas festividades pagãs e cristãs, para se alcandorar como o fim em si mesmo – consumir, consumir, consumir!
O mercado de consumo dita as regras da festividade natalícia, e até mesmo o Menino Jesus é hoje substituído pelo Pai Natal, recentemente inspirado na célebre figura do Bispo de Mira, São Nicolau Taumaturgo, e cujo visual típico está erroneamente associado às campanhas publicitárias da Coca-Cola, uma vez que muito antes destas campanhas (a primeira foi em 1930) já o Pai Natal tinha sido caracterizado mais ou menos desta forma, pelo caricaturista Thomas Nast, em 1886, ou seja, 40 anos antes da campanha desta conhecida bebida.
Mas a essência do Natal, a que verdadeiramente importa realçar e lhe dá a força universal, não será a do próprio mistério da vida? O nascimento de Cristo não será, mesmo para os cristãos, a par do nascimento do próprio Deus Menino, a síntese da glorificação do nascimento de todos nós, humanidade em perpétuo movimento e que, para o melhor e para o pior, há-de sempre ter de contar com as suas próprias forças e fraquezas, misérias e grandezas, no exemplo de alguém que nasceu para, em supremo acto de dádiva completa, morrer por todos nós?
É o júbilo redentor de quem nasceu para nos salvar, de quem se entregou totalmente a todos nós e entregando-se, nos ofereceu a mais admirável, extraordinária e profunda das histórias da humanidade, que há-de perdurar muito para além dos interesses do mercado consumista, das modas transitórias, da efémera lembrança que a fadiga do tempo não se esquecerá de apagar.

E também por isto devemos estar atentos a tamanha explosão de boas vontades, de tantos votos de felicidades, de tantas boas intenções… Elas comovem-nos, tocam-nos, sensibilizam-nos…
Mas se olharmos bem para muitos dos seus proponentes não conseguimos vislumbrar mais que palavras ocas e vãs, ditas na perdulária voz do interesse mesquinho e imediato, apelando à paz e concórdia sem nunca terem feito nada para a sua obtenção efectiva, quantas vezes fazendo crer que é nos outros que está a “culpa” das dissenções e do mal, sem se aperceberem que é no seu próprio seio, ou no seio dos que lhes são próximos, que as rupturas são provocadas, as maledicências proferidas, os vitupérios orquestrados…!
Ou seja, um ano inteiro a provocar e a permitir que o mal seja cometido para depois se arvorarem em defensores do bem, numa qualquer quadra natalícia que, entretanto, cedo passa e logo se esquece… soa a falso!
Porque Natal ainda não é todos os dias, e o espírito imanente desta quadra natalícia ainda não consegue abranger a totalidade verdadeiramente universal que deveria abarcar… ele fica-se, tantas vezes, pelo uso (e abuso) de desígnios indevidos de alguns, para desonra de todos nós!
Que todos saibamos destrinçar o trigo do joio, para que os falsos e enganosos votos que deslealmente nos são proferidos soçobrem de imediato perante as boas e verdadeiras intenções de bem-estar natalícias.

Agostinho Ribeiro

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