sexta-feira, 1 de junho de 2012

Os museus do Estado e o seu novo modelo de tutela e gestão.






No dia em que as novas leis orgânicas das direções regionais de cultura e da direção geral do património cultural entram oficialmente em vigor, os decretos lei nº.s 114 e 115, de 25 de Maio de 2012, imponho-me a obrigação de tecer algumas considerações em torno das mesmas e dos reflexos que terão no futuro dos museus do Estado Português.

Importa desde já referir que as minhas considerações nada têm a ver com as pessoas que, de alguma forma, se constituem como protagonistas neste processo, mas antes com as instituições envolvidas e com os dispositivos legais e respectivas consequências na gestão, organização e funcionamento dos museus.
Pretendo, portanto, exercer um contraditório baseado em dados concretos, e não em suposições ou dados avulsos e desgarrados sem qualquer contextualização que os possa interpretar devidamente e admitir como válidos.
Embora os exemplos e os dados que aqui vou apresentar respeitem essencialmente ao Museu de Lamego (doravante ML), por razões evidentes que não vale a pena aqui enunciar, a verdade é que tais exemplos se replicam na esmagadora maioria dos restantes casos, sempre a favor das teses que defendo.
Em qualquer altura e lugar terei todo o gosto em pormenorizar e detalhar tais dados no que respeita a outros museus, mas seria fastidioso esgrimir aqui todos os elementos referentes a estas problemáticas, quando multiplicados por 28 unidades museológicas.
Dito isto, e faltando ainda o enquadramento regulamentar que há-de ser conferido por portaria competente, podemos desde já produzir algumas considerações, baseando-nos exclusivamente no que está (e no que não está) contemplado nestes diplomas legais.

Começando pelas questões mais simbólicas, mas que resultam depois em algumas matérias de substância, transferiram-se do serviço central para as direções regionais de cultura, 14 museus e 1 palácio, ficando os restantes 4 palácios e 14 museus do ex-IMC na dependência da nova direção geral do património cultural.
Vários argumentos têm sido apresentados a favor desta opção, que ouvi de viva voz e li pelos órgãos de comunicação social, todos eles, sem excepção, muito pouco convincentes, como demonstrarei de seguida:

a) O primeiro critério enunciado para justificar estas transferências foi o de que se mantinham os palácios e os museus com designação “nacional” numa direção geral, e todos os outros seriam transferidos para as direções regionais do território onde estavam inseridos, como opção política assumida pelo atual Governo.

Ora, como é fácil de verificar, o Museu Grão Vasco (MGV) não possuía a designação de “nacional” e fica na dependência da nova direção geral e o Paço dos Duques, em Guimarães, integrado nos “palácios”, passa para a direção regional de cultura do norte.
Duas excepções que nos confirmam a regra, ou duas excepções que destroem o fundamento invocado, mesmo que num âmbito arbitrariamente político?
Em todo o caso, a designação “nacional” para um qualquer museu é equívoca e permeável a confusões substantivas, sendo atualmente objecto de reflexão no sentido de se apurarem os critérios objectivos que podem validar (ou não) tal designação.
Dando como exemplo o ML, verifica-se que este possui mais bens classificados de interesse nacional (vulgarmente designados por Tesouros Nacionais) do que a esmagadora maioria dos museus ditos “nacionais” e, no entanto, não beneficiou de uma qualquer benevolência política arbitrária que o mantivesse na dependência do serviço central, ao contrário do que aconteceu com o MGV.
A pergunta impõe-se, em nome da transparência e da justeza das coisas, num Estado Democrático como o nosso – porquê?

É que o mesmo ML, quando comparado com o MGV, leva-nos à constatação de que este possui 22 Tesouros Nacionais referentes a 3 categorias (20 pinturas, 1 escultura e 1 peça de ourivesaria) e o ML possui 18 Tesouros Nacionais referentes a 4 categorias (5 pinturas, 1 escultura, 6 painéis de azulejaria e 6 tapeçarias) a que acresce um monumento classificado como imóvel de interesse público, ínsito no acervo em exposição permanente (1 cruzeiro gótico do séc. XV).
Não esquecendo que das 20 pinturas do MGV, 19 correspondem aos retábulos da Sé de Viseu e do seu Claustro, da co-autoria e autoria de Vasco Fernandes, exactamente o mesmo pintor das 5 tábuas de Lamego, aqui e hoje comummente admitidas como as primeiras obras primas da exclusiva mão deste génio da pintura portuguesa.

Ora, se acrescentarmos a tudo isto o fato de a coleção de tapeçarias seiscentistas do ML ser única em Portugal, suprindo em diversidade qualitativa a quantidade dos tesouros do MGV, não se percebe porque razão há-de estar o museu de Viseu na dependência tutelar da direção geral e o museu de Lamego na da direção regional...
Alguém me pode explicar essa razão?

b) O segundo argumento apresentado publicamente a favor destas alterações têm a ver com critérios de razoabilidade e indicadores de gestão, que são ambiguamente apontados, mas nunca nos foram devidamente explicitados e muito menos explicados. No entanto dão a entender, erroneamente, que os museus que são transferidos para as tutelas regionais teriam “perfomances” gestionárias bastante frágeis e criticáveis, em contraponto com os museus nacionais, sendo até nomeado um museu como paradigma dos novos desafios que a sociedade contemporânea nos coloca a todos. Refiro-me, concretamente, ao Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), a propósito da sua recente presença esporádica no Centro Comercial Colombo, em Lisboa.

Acontece que, se todos os museus têm, nos seus percursos gestionários, acções e eventos que se podem comparar ao agora produzido (e tão elogiado) pelo MNAA, convém lembrar que é este museu, precisamente, e à luz do último relatório de contas do IMC que se encontra publicado (2010), o que tem o maior saldo negativo de todos os museus e palácios do ex-IMC. (- 860.691, 78 €).
Recriminar, portanto, museus que têm saldos negativos que são 3 a 8 vezes inferiores ao saldo negativo de um museu que se elogia publicamente é, no mínimo, um exercício de enorme injustiça avaliativa.

Acresce a esta inquestionável e demonstrável asserção o fato, mais que relevante, de que a esmagadora maioria dos museus cujos saldos são mais negativos correspondem, grosso modo, aos museus ditos “nacionais”, e os menos negativos são os dos museus que agora se transferem para as direções regionais, numa relação de 3.199.974,67 € para estes, contra 6.555.893,72 € para aqueles (ainda e sempre referentes ao ano económico de 2010). Estas simples constatações demonstram que tais argumentos jamais podem validar as opções tomadas e, sobretudo, não se percebe em que é que poderão alterar, para melhor, a situação existente...
A solução, como é mais que evidente, é a de dotar os museus com as verbas indispensáveis às suas boas prestações e isso é válido para todos, independentemente das tutelas a que possam estar sujeitos.

E é claro também que estes valores agora apresentados têm justificação mais que aceitável no contexto das atividades que cada museu desenvolve (basta ler o relatório dos museus, onde vêm profusamente descritas as suas múltiplas e importantes actividades culturais e educativas), e não se faz nenhuma avaliação qualitativa ao desempenho de cada museu, como deveria ser feito por todos. Apenas se exerce aqui o contraditório nos precisos e únicos termos e critérios chamados a público para justificar estas mudanças.

c) O terceiro fundamento esgrimido tem a ver com o facto de determinados museus serem “mais significativos” que outros, sintetizando o que atrás já se encontra relativamente escalpelizado, mas que parece constituir uma genérica referência a prestações menos adequadas, resultando numa apreciação negativa à gestão e/ou qualidade de alguns museus, que não pode deixar de ser contraditada com veemência.

Desde logo porque em lado algum nos é explicado os indicadores de tal significância, ou falta dela, esclarecimentos e detalhes  que seriam muito bons de se dar, para que todos pudéssemos perceber o que é que está em causa quando se “fala” de museus “mais significativos” que outros...
É que se forem questões de qualidade de acervo, só se pode concluir por um enorme e lamentável desconhecimento de quem produziu tais afirmações, como atrás já ficou evidenciado, ainda que com um único exemplo museológico, mas que poderemos repetir sem esforço algum para a grande maioria dos museus agora em causa.

Serão as prestações quantitativas de cada museu a ditar as maiores ou menores significâncias gestionárias? Mas se assim for, também essas asserções não são verdadeiras e constituem até, em determinadas circunstâncias, um verdadeiro insulto às equipas e direções de muitos museus “menos significativos”, porque podemos afirmar categoricamente que os museus fora de Lisboa possuem níveis de interlocução com o público visitante e graus de planeamento e execução orçamentais, e de atividades, pelo menos idênticos aos dos museus ditos nacionais, maioritariamente localizados em Lisboa.
Tomando como exemplo o MNAA e o ML, e não esquecendo que os potenciais públicos se medem no contexto da localização de cada unidade museológica, tendo em conta a população residente e os fluxos turísticos de cada região, não se pode atirar com números para o ar, em termos absolutos, como se de uma verdade insofismável se tratasse.

Assim, é fácil verificar que Lisboa oferece ao MNAA um público potencial na ordem dos 5 milhões de pessoas (meio milhão de habitantes mais 4 milhões e meio de turistas por ano) e Lamego oferece ao ML um público potencial de muito menos de 200 mil pessoas ao ano (pouco mais de 12 mil habitantes e não chegam a 200 mil os turistas que anualmente demandam toda a Região do Douro).
Terá que ser, portanto, neste contexto, que qualquer análise aos fluxos de visitantes se devem processar e, neste particular, definindo métodos justos e fiáveis para a fixação de rácios credíveis na relação entre o meio envolvente e cada museu, para podermos chegar a algumas conclusões acertadas, sendo que qualquer análise às prestações dos museus que se baseie exclusivamente na quantidade de entradas geradas constituirá sempre uma errada e muito incompleta forma de perceber o “valor” gerado por cada museu.
Se em 2010 o público que visitou o ML foi de 25.358 pessoas, para um potencial que fica longe de poder atingir as 200.000 pessoas, o MNAA deveria ter, por extrapolação percentual, um público visitante de 633.950 pessoas para possuir um desempenho semelhante ao ML, mas quedou-se por uns meros 118.112 visitantes, ou seja, 5,3 pontos abaixo do nível de desempenho deste museu.

Tenho plena consciência do quão injusto estou a ser nesta análise simplista e redutora, mas esta é a única forma que se pode usar publicamente para contraditar, com todo o rigor, as análises simplistas e redutoras que põem em causa, falsamente, as prestações dos museus que se localizam fora da capital!

d) Outro argumento apresentado a favor destas alterações tutelares remetem para a valorização dos museus que transitam para as direções regionais, a pretexto de constituir um upgrade de cada museu no território onde está inserido, conferindo maior autonomia, proximidade, partilha e celeridade nas decisões sobre a vida de cada museu.

Também neste particular nos parece que tal boa vontade, manifestada verbalmente, não possui cabimento nem na letra nem no espírito destas leis orgânicas.
A verdade é que, quando os museus deixam de ter orçamentos próprios e possibilidade legal de planeamento (ficando tal possibilidade ao critério da boa vontade arbitrária da tutela, porque a lei a não confere expressamente), não se pode defender que  tais alterações resultam em benefício autonómico dos museus.
Do mesmo modo que, quando as matérias essenciais de propositura e execução da política museológica nacional ficam nas atribuições da direcção geral do património cultural (alínea c) do artigo 2º do decreto nº 115), restando às direções regionais a competência de assegurar a gestão das instituições museológicas que lhe forem afetas (alínea e) do artigo 2º do decreto nº114), é óbvio que estas direções regionais mais não são que um novo intermediário colocado entre os museus e o centro fundamental de decisão, burocratizando e complicando o processo de gestão museológica, ao invés de o simplificar.

Donde, em vez de aproximar, distancia. E em vez de partilhar, retalha!
Tudo porque não só a definição e, mais importante, a execução da política museológica nacional se mantém centrada na capital, como cria aos museus que agora passam para as tutelas regionais mais um serviço intercalar que, em última análise, terá sempre de articular e reportar ao serviço central.
Só seriam verdadeiras estas asserções se os museus continuassem e até aumentassem os seus graus e níveis de autonomia gestionária. Mas como o que acontece é precisamente o contrário, não se vê nem se percebe em que é que tais alterações redundam em benefício dos museus.

e) Em suma, todos os museus perderam autonomia e independência gestionária, uma vez que deixam de ter orçamentos próprios e é-lhes retirada a possibilidade de gerir algumas das suas receitas, como acontecia anteriormente.

Acresce que, ao nível da Rede Portuguesa de Museus, tais alterações podem vir a criar maiores dificuldades de articulação entre os museus que a integram, já que são introduzidos mais 4 serviços com alguma capacidade decisória e de gestão no sistema hierárquico de (co)responsabilização (?), as direções regionais, sem que se saiba nem perceba muito bem como é que todo o sistema irá funcionar.

Mas sobre a Rede Portuguesa de Museus, manda-nos a prudência aguardar as respectivas portarias para melhor podermos aferir do rumo que a mesma irá tomar.

Finalmente, um último argumento usado a favor destas alterações é o da maior eficácia na gestão dos recursos globais, podendo os serviços tutelares dispor de todos os recursos financeiros obtidos, tanto por via do Orçamento do Estado, como por via das receitas próprias de cada museu, agilizando assim os procedimentos de execução orçamental.
Ora, este argumento também é falacioso, e estas dificuldades e problemas só existem porque o Estado se tem vindo a demitir das suas responsabilidades, suborçamentando de forma continuada e sistemática os museus que tutela. Estas suborçamentações é que obrigam os museus a ter que recorrer aos serviços centrais para que estes supram as lacunas que o próprio Estado lhes cria, sem qualquer respeito pelo esforçado e competente trabalho das equipas técnicas, tanto dos serviços centrais como de cada museu.
É verdadeiramente deprimente ter que se trabalhar nesta situação e ainda por cima para sermos rotulados, no final, de fracos gestores quando o Estado se demite, pura e simplesmente, das suas obrigações, deixando aos seus quadros a ingrata tarefa de suprir estas insuficiências.
Logo, a solução adequada para contrariar este problema não é retirar autonomia aos museus, mas sim reforçar essa autonomia e dotá-los com orçamentos verdadeiros e rigorosos.

E o argumento de que os museus não podem continuar à mesa do orçamento do Estado e devem procurar receitas noutras fontes, nomeadamente, privadas, é argumento que só nos pode deixar perplexos, pela simples razão de que não foram os privados que criaram estes museus do Estado – foi o próprio Estado que os criou, com missão e objectivos de natureza cultural e pública que se não podem compaginar com aventuras experimentalistas como as que agora se apresentam.
Se os criou e agora não os quer ter nem manter, por entender que pode prescindir dos seus serviços culturais, então tem uma única solução – extingue-os, assumindo todo o ónus de uma tal decisão, pelo radicalismo que envolve!
O que não pode, nem deve, é ter um discurso pretensamente moralista sobre a gestão dos dinheiros públicos, como se os dinheiros públicos não existissem e fossem cobrados, precisamente, para realizar as obrigações constitucionais que todos os portugueses devem respeitar e fazer cumprir.

Para além do mais, os museus não são empresas, são serviços públicos culturais e a salvaguarda e valorização do património são deveres do Estado, com dignidade constitucional, não podendo de modo algum serem banalizados e contornados nos termos em que estão a ocorrer, com risco de aniquilarmos a verdadeira essência e fundamentos das suas existências.
E basta analisar os Relatórios e Contas de algumas entidades que perseguem também objectivos de natureza cultural, similares ou próximos dos museus do Estado, mas geridos com parcerias privadas ou fundacionais, para constatarmos o quanto são os museus do Estado verdadeiramente desprezados pelo seu próprio criador.
As dotações financeiras do Estado chegam a ser atentatórias da dignidade dos seus próprios museus, quando verificamos que existem entidades a receberem do Estado metade do valor que o mesmíssimo Estado concede aos 33 museus e palácios que tutela diretamente...!
Quando o Estado quiser ser justo e equitativo, deve tratar melhor os museus que tutela, nomeadamente distribuindo com equidade os parcos recursos que possui para o setor cultural. Se dotasse os museus com a mesma benevolência com que dota outras instituições próximas ou similares, então teria que transferir para os museus mais de 150 milhões de euros, em vez dos cerca de 10 milhões que atualmente transfere...

Gritante, esta injustiça, não é verdade?

Agostinho Ribeiro

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