A miudagem
perde-se em correria estonteante e gritaria nervosa, enquanto o sol castiga
duramente o largo à frente da igreja. Já são poucos, os miúdos… A missa ainda
não começou e o Douro está mais frágil…
Os mais velhos
coçam a cabeça, de chapéu alçado à banda, encostados ao murete do falso
descanso do dia que é do Senhor, à procura da sombra amiga da figueira que
teima em não definhar. Também ela há-de morrer um dia…
E o Douro cada
vez mais frágil…
As mulheres,
essas, já estão lá dentro, nas rezas sussurradas, entrecortadas por pensamentos
e actos, e omissões e palavras, e olhares de soslaio e lábios cerrados, que a
vida ainda é dura, em orações e preces murmuradas, que as fazem renascer em
cada domingo que passa.
Coloco-me mais
a jeito, debaixo da árvore secular, hirta e distante, de tão orgulhosa que está
da sua prodigalidade, e perco o meu olhar na infinitude do vale que se abre à
minha frente, saltitando, de olhos semicerrados, por entre os vinhedos bem
tratados que se perdem na lonjura destes nadas que são tudo, desta fonte de
vida que é dor e suor, parados por um instante, presos por um fio invisível que
nem sequer sabemos se existe verdadeiramente, num dia que se diz de domingo,
antes que se retome o ciclo do esvaziamento vagaroso, muito vagaroso e lento, que
nos consome pausadamente, já que no Douro, o tempo não tem relógio que o saiba
contar…
Quão frágil nos
está este Douro que nos abafa e afaga, perdido entre berros de crianças e
remoques de velhos, sumido entre súplicas de mulheres e a indiferença dos
jovens, que todos os dias viram costas às mães e partem para outras paragens,
onde o sol não castigue tanto e a terra lhes não seja tão ingrata.
E as festas que
estão aí… Não como antigamente, claro, mas ainda assim repletas de promessas enganadoras
de uma vida que não é verdadeira, mas que ajuda à passagem dos anos, como se os
anos se contassem pelas vindimas, ou pela poda, ou pelas festas… Ou apenas se
contam agora pelo dia já mais distante em que o filho abalou para outras
paragens em busca de uma vida melhor… Com promessas de voltar, um dia…
E o sol,
indiferente a estes sonolentos pensamentos, continua a castigar duramente o
adro da igreja, também ele parecendo um pouco arreliado pelo ligeiro atraso do
senhor padre, que tarda a vir para nos tirar desta fadiga que é a espera à
sombra da figueira que também há-de morrer…
Este ano
havemos de ir todos à festa da Senhora dos Remédios, se o filho vier passar por
cá uns dias… Ele há-de lembrar-se… Ele há-de lembrar-se de vir… Ele gostava da
marcha luminosa e da procissão! Quando era pequenote, os olhos brilhavam de
deslumbramento e ilusão perante as miríades de luz que animavam o cortejo… E
não parava de perguntar o que era aquilo, na procissão… aquilo ali de cada
andor, aquilo ali de cada figura… Ele há-de lembrar-se e há-de vir, nem que
seja apenas nos dias principais…
Já lá vão vinte
anos e ele sem vir… E este sol que não pára de nos castigar… E o senhor padre
que tarda a vir rezar a missa…
E este Douro
cada vez mais frágil… Será que não se cansa de se esvaziar? Serão os meus olhos
agastados pelo tempo que já não encontram vida onde ela existiu, e estes
ouvidos que já não ouvem os gritos das crianças como outrora, à volta do adro
da igreja ou no recreio da escola…?
Mas não, não é
impressão… Os gritos da miudagem deixaram mesmo de se ouvir… O silêncio
apressa-se no adro porque o senhor padre já chegou e a missa vai começar. O
primeiro cântico ecoa de dentro do templo, no falsete das mulheres, enquanto os
homens se apressam a tirar os chapéus e a entrar na igreja, respeitosos e
solenes, face dura e gretada pelos dias da terra, que este Douro não perdoa
quando o sol se decide a castigar com mais força…
Mas está mais
frágil, este Douro, lá isso está…
Agostinho
Ribeiro
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