quinta-feira, 31 de julho de 2014

Aquilino Ribeiro e o Museu Grão Vasco *




De Aquilino Ribeiro sei o que a maior parte dos portugueses, de uma maneira geral, sabem. Menos do que deveria, portanto. E tanto de Aquilino Ribeiro como de todos os outros escritores portugueses, clássicos ou não, integrados já no imaginário literário nacional, ou ainda à espera de um reconhecimento mais consistente, confesso as minhas limitações e penitencio-me por elas.
Dito isto, sinto-me mais tranquilo em escrever algumas generalidades sobre um texto de uma das personalidades que mais me marcou no tempo fabular em que eu consumia livros até à exaustão, como agora o faço no consumo desregrado da informação rápida, fácil e acessível (ainda que por vezes pouco fiável), por via da internet.

Os tempos mudaram, não haja dúvida nenhuma sobre isso, e isso nem sequer é dramático, como muitos pensam ser. Mas há coisas que convinha preservarmos, como outras há que mesmo sem disso nos darmos conta já existiam no tempo dos que hoje achamos velhos, como se a verdadeira culpa de o sermos, ou de os outros assim considerarmos, fosse do tempo, e não de nós. Não sei porquê, mas dou comigo a pensar bastas vezes sobre quem será mais velho: se um jovem que não faz uma pálida ideia de quem foi Aquilino, ou Torga, ou Camilo, ou Eça, ou Camões, ou Pessoa…, ou um qualquer “velho”, como eu, na dificuldade tacanha que tenho em enfrentar e dominar um smartphone que insiste em ser tão meu adversário no uso que dele teimo em pretender dar; ou como aliado servil doutrem, odioso para mim (roído de inveja), nos dedos desses jovens que nem para ele precisam de olhar, quando o manuseiam com o à vontade da escrita fácil e abreviada dos “kapas”. Mas é um pensamento mentiroso, e até mesmo intelectualmente desonesto da minha parte, mea-culpa, porque não me sinto velho, embora pressinta que muitos jovens me olham como se o fosse, e eu, sorrindo interiormente, percebendo perfeitamente porque assim me olham, já que tenho memória, e ainda me lembro bem de como olhava eu, na minha infinita impreparação para a vida, os que então não andariam longe da idade que hoje me traz vivo.

Adiante, que de lamúrias não se faz história, e muito menos se faz conhecimento, como naquele dia em que uma das senhoras conservadoras do nosso museu, a Dr.ª Graça Marcelino, responsável pela biblioteca e arquivo, me fez chegar gentilmente às mãos, ufana, uma cópia de um escrito de Aquilino Ribeiro, no velho Almanaque Bertrand de 1937, a propósito, precisamente, do Museu Grão Vasco. Assim mesmo, sem outra qualquer denominação de Museu, regional que fosse pela construção preambular do diploma legal que o fundou, e que por essa altura fazia a designação oficial do Museu; nem tão pouco sequer com a preposição “de”, que perdurou quase até à atualidade na legenda titular que o identificava. Não por mero acaso, certamente, mas propositadamente, Aquilino Ribeiro não esteve com meias medidas, como tantas outras vezes também não esteve, e escarrapachou o título que lhe servia na perfeição à intenção do escrito, simples e direto – O Museu Grão Vasco!

O homem era mesmo levado do tal que emprestou o nome à terra onde nasceu, e percebe-se o desígnio das tergiversações iniciais, como que a preparar os incautos leitores para a visão da ferida que ele haveria de tocar ao fim. Mas lá iremos quando a linha de pensamento aportar no que me traz à pretensão judiciosa destas linhas… A verdade é que andava eu embrenhado nuns arremedos de ideias a propósito do encontro sobre o centro histórico de Viseu, na insana preocupação de pretender dizer em escassíssimos minutos o que um qualquer ser minimamente consciente sabe não poder fazer devidamente numa comunicação séria, estruturada, com princípio, meio e fim, quando a senhora conservadora, salvífica, me brinda com aquele delicioso texto, tão aquiliano quanto Aquilino sabia ser.

Salvífica, porque me permitiu usar um poderosíssimo argumento a favor do que verdadeiramente me motivava para aquela breve intervenção, já que poderia partilhar com todos uma pretensão que nem sequer era nova no desejo de a concretizar – a ideia de que o Museu Grão Vasco era tão importante, enquanto instituição museológica, como excelente na valia do seu acervo, que não o designar com o título “nacional” era, no mínimo, um deselegante desrespeito à extraordinária qualidade da instituição.

Aquilino sabia do que escrevia e, além do mais, sabia perfeitamente como alcançar o objetivo da sua escrita, tendo em atenção as circunstâncias do tema, do tempo e até mesmo do lugar. O texto é singular, na medida em que parte de uma consideração geral a propósito da visita de Raczynski a Viseu, em tom muito próximo do coloquial, para de seguida se centrar no Museu Grão Vasco e no que, de facto, o levou à sua escrita. A propósito do devaneio “raczynskiano” pelas terras beirãs, tece então sentenciosas considerações de uma não disfarçada incomodidade pelo que ainda não estava resolvido no “casco” antigo da cidade. E passa, de seguida, à fundação do Museu. Tudo isto sem deixar de enquadrar o fenómeno, de inspiração republicana, “no movimento que teve em José de Figueiredo um dos primeiros impulsores”, a que acrescentou, sem pestanejar, que tal movimento “consistia em criar em Portugal o gosto da arte e cada cidade ir arrecadando convenientemente o que, no seu âmbito, se recomendava pela beleza, carácter, cunho histórico” [1].

Já, por várias vezes e em diversos textos meus, enfatizei estes princípios fundamentais de base republicana, que levaram à edificação de alguns museus espalhados pelo todo do território nacional [2]. A Primeira República foi responsável pela instituição de 13 museus, entre 1912 e 1924, o que nos dá bem conta da preocupação e do afã em construir o que agora designamos, pomposamente e bem, uma rede de museus, cuja missão era a de salvaguardar e valorizar o que de mais precioso existia em Portugal.

Mas temo que haja por cá, precisamente por Portugal, muita boa gente que, propositadamente ou não, pretenda continuar a confundir a constituição de uma rede de museus harmoniosamente distribuídos pelo todo do território nacional, para elevar a cultura nacional por via da “educação do povo” e da salvaguarda e valorização do património artístico português (os tais princípios muito genéricos, velhinhos, dos republicanos de boa cepa), com a construção de museus regionais no sentido restritivo do termo, que o mesmo é dizer, museus que representam uma parcela constrita do território, cuja valia do acervo não alcança o patamar da importância e visibilidade nacionais e, como tal, apenas se deve confinar ao local ou, quando muito, à região onde está instalado… Importantes, sem dúvida alguma, mas outros que não estes que estiveram na base da construção da nossa história e tessitura museológicas. E, por via desta ínvia pretensão, abdicarem pura e simplesmente das suas obrigações constitucionais, transferindo as tutelas destas instituições para setores da administração pública mais consentâneas com a natureza “regional” ou “local” destes museus. A confusão teórica é consciente e propositada, porque serve a intenção das desqualificações orgânicas e funcionais, a pretexto de um argumentário baseado em dados quantitativos indevidamente analisados e incorrectamente apresentados à opinião pública nacional.

É curioso constatar então, que afinal nem o problema é de hoje, nem as soluções são tão inovadoras como nos querem alguns fazer crer… Aquilino Ribeiro, em 1937, apercebeu-se muito bem desse logro em que nos quiseram fazer cair, porque ao escrever este aparentemente inofensivo texto, nada mais estava a fazer do que a criticar asperamente o elitismo despropositado, muito típico do complexo provinciano de que a capital nos dá, amiúde, sinais de possuir (e exercitar). Para além de outras razões de natureza ideológica, que não temos espaço, agora, para tratar, e que se prendem com a postura intelectual e política de alguns membros do 7º Governo da ditadura, nomeadamente de Gustavo Cordeiro Ramos, Ministro da Instrução Pública ao tempo da produção do documento legislativo que esteve, seguramente, na origem do texto que Aquilino Ribeiro escreveu.

Refere ele o seguinte, já em fase de arrematação: “O que é o Museu Grão Vasco? O Museu Grão Vasco não é Viseu; não é Beira. É Portugal. Mais que Portugal é o mundo, pois que a arte tem feição ecuménica. Regional é o apenas no rótulo que oficialmente lhe deram. De facto, museu regional implica arte regional, arte particular, sui generis. Em país uno, indiviso, nada de nada compósito como o nosso, poderá florir esta planta? Ainda que se confinasse no papel de repositório etnográfico, à parte a explicação que lhe poderia trazer a geografia, seria coisa impossível.”[3] O que pode parecer, à primeira vista, um despropósito de consideração, mesmo porque já se vivia num tempo em que ninguém teria coragem de por em causa a valia do património artístico ínsito ao Museu Grão Vasco, é facilmente explicado à luz do diploma legal então em vigor, e que tinha estruturado os museus portugueses em três grupos – nacionais, regionais e, simplesmente, “museus, museus municipais, tesouros de arte sacra e outras mais colecções oferecendo valor artístico, histórico ou arqueológico.” [4] É claro que o Museu Grão Vasco estava incluído no segundo grupo, e era essa precisa constatação que motivou, e explica, o conteúdo do texto agora em evidência.

Era, certamente, contra esta organização tipológica desprovida de sentido (técnico, científico e até mesmo ideológico) que Aquilino afinou o intelecto e, no uso seguro do seu bisturi, delimitou o campo da intervenção cirúrgica para conter a doença que propagaram a estes museus, pela introdução de níveis diferenciadores onde havia semelhanças, pela marcação de alteridades onde havia similitudes, fazendo então, nos idos dos anos trinta do século passado, o que agora se está a tentar fazer de novo… e agora, de forma ainda mais imprudente, não perscrutando o pensamento dos mais insignes museólogos portugueses, perdidos que andamos na inexistência de outros “Aquilinos” que, no tempo certo, nos soubessem usar o peso da sua personalidade e o poder da palavra que produzem, para defender a razoabilidade e a racionalidade na alteração ao modelo vigente, que se vê cada vez mais próximo dos idos de 1937, com a agravante de as diferenças serem ainda mais gravosas do que então…

Infelizmente, Aquilino Ribeiro já não pôde observar a primeira grande alteração conceptual que se produziu na classificação dos nossos museus, depois do célebre decreto que invetivou. Isto porque foi apenas dois anos após a sua morte que, por força da publicação do importante Regulamento Geral dos Museus de Arte, História e Arqueologia, em 1965 [5] (resultado seguro dos inestimáveis contributos de João Couto para a causa da museologia nacional), se iniciaram profundas alterações que haveriam de construir um corpo teórico consistente, e uma práxis consentânea (ainda que com muitas lacunas, erros pontuais, avanços e recuos) até 2011, finalmente interrompido com as últimas alterações legislativas do sector, em 2012, que, como se pode facilmente demonstrar, promovem o retorno (e a regressão) ao modelo criticado por Aquilino Ribeiro.

“Percorrer as salas do Museu Grão Vasco, tão inteligentemente alfaiadas (…) é sentir-se, diríamos, em boa e afamada galeria europeia. Depois das Janelas Verdes é do melhor que se pode apontar a dedo.”[6]

Pelos vistos, defendemos em 2014 exatamente o mesmo que Aquilino Ribeiro já defendia em 1937, como se o tempo, afinal, não tivesse tido tempo de mudar as velhas ideias de uma forma tão consistente e estruturante, que as entendêssemos completamente sedimentadas no coletivo das elites intelectuais portuguesas e, por via disso, fossem essas mesmas velhas ideias coisas do passado, mortas e enterradas, apenas recordadas por nós como interessante tema de discurso e abordagem historicistas, e não questões da contemporaneidade que nos obrigam a tentar perceber o que correu mal, nos últimos 49 anos desta nossa existência museológica, em Portugal.
Ou não (não correu mal), e apenas estamos a manusear agilmente o telefone que se diz ser inteligente, pensando nós que isso nos basta para sermos vistos como génios criativos e inovadores, prontos para as grandes mudanças de paradigma que a sociedade moderna nos exige promover, apontando caminhos que, afinal, mais não são que trilhos antigos há muito abandonados… Basta ler algumas coisas de Aquilino Ribeiro, e de outros como ele, para ficarmos com essa certeza.

Agostinho Ribeiro
Viseu, 31 de Julho de 2014.

* Publicado nos Cadernos Aquilinianos, nº 22, Série 3, CEAR (Centro de Estudos Aquilino Ribeiro), Pgs. 83-88, 2014.



[1] RIBEIRO, Aquilino – O Museu Grão Vasco, in Almanaque Bertrand, 1937, pg. 78.
[2] RIBEIRO, Agostinho – Um Museu para a Região do Douro, fundamentos e proposta de organização, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2002, p. 34 e segs.
[3] RIBEIRO, Aquilino – ob. cit., pg. 79.
[4] Artº 49º, c) do Decreto nº 20:985, de 7 de Março de 1932.
[5] Decreto nº 46 758, de 18 de Dezembro de 1965.
[6] RIBEIRO, Aquilino – Ibidem.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Das vantagens do compadrio!

Breve elucidário (em três imagens), de uma das vantagens em se ter um compadre mercenário a dirigir um serviço público, ali colocado por designação pessoal e arbitrária, claro…

I



II



III







Este breve elucidário destina-se exclusivamente ao concelho de Lamego, uma vez que não tenho conhecimento de em mais lado algum tal coisa acontecer!

Agostinho Ribeiro

domingo, 13 de julho de 2014

Tenham vergonha!




Dar visibilidade mediática, apoiar desavergonhadamente, permitir cobertura institucional, e o mais que ainda por aí virá, a um indivíduo indiciado pela prática de um ato grave de benefício próprio ilegítimo, que ainda está, ao que se espera, em averiguação junto das entidades competentes, é mais uma pouca vergonha que nos deveria obrigar a repensar todo o sistema público, institucional, em que nos movemos.
O pretexto será sempre o da valorização da instituição, (que já sabemos não ter nada a ver com o caso) como se a instituição precisasse de ser valorizada, precisamente e sobretudo no momento em que ela é dirigida pelo protagonista em questão.

Tenham vergonha!

Agostinho Ribeiro

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Jardins Efémeros, 2014.*



Efémeras são todas as coisas da vida… Está na nossa natureza lidar com o transitório porque, precisamente, é nessa mesma transitoriedade que reganhamos a força e o entusiasmo para construir o novo; reinventamos modos de estar no mundo; voltamos a sonhar os velhos sonhos, mil vezes revistos, mil vezes reinterpretados, revisitados, modificados e, de novo, reapresentados em atos de genuína criação, puros, autênticos, sentidos, singulares ou coletivos, profundos… Como profundas devem ser as raízes que do chão fazem brotar as plantas dos jardins, nos jardins que todos os dias nos conseguem surpreender pela variedade das formas e beleza dos conteúdos. Em suma, é na efemeridade dos nossos atos que ganhamos o direito à perenidade!
Nestes jardins que agora tratamos, as formas são múltiplas, ousamos mesmo dizer que são tipologias, ao jeito diversificado, que os artistas usam nos seus percursos muito próprios de cada ato criador. Apelo aos sentidos, aos sentimentos certamente, mas também à reflexão em torno das causas maiores e dos valores que nos são caros, este ano transpondo as barreiras da imaterialidade e da invisibilidade para o plano do fazível, construindo tangibilidades como só as almas grandes o sabem fazer, que o mesmo é dizer, como só os criadores de arte (vulgo artistas) o sabem produzir e realizar. Para nosso deleite, para nosso encantamento, para nosso desassossego, para nosso bem…
Os jardins são criações dos humanos, na incessante busca da perfeição inalcançável de querer dialogar e interagir com a natureza, e com os outros... É a nossa própria perceção do belo, seja lá o que isso for, feito chão, refletida na mente e nas mãos dos jardineiros que os concebem e constroem para nós. Aqui, em Viseu, agora, um deles como resultado da ideia, do cuidado e da perseverança de uma admirável jardineira, que porfiadamente vai criando jardins efémeros de excelências, e já vamos no quarto ano de (seu) cultivo.
O Museu Grão Vasco tem todo o gosto em ser, também ele, cúmplice nestas intenções de sermos mais, e irmos mais longe, feito breve canteiro destes efémeros jardins, que se hão-de eternizar na memória de todos.
Agostinho Ribeiro

Diretor do Museu Grão Vasco

* Texto publicado na edição especial do Jornal do Centro, "Jardins Efémeros 2014".