segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Descentralização dos museus do Estado? Uma errónea equação!


Transferir para os órgãos municipais a competência de gerir, valorizar e conservar os museus (do Estado) que não sejam museus nacionais, como estabelece  a alínea b) do artigo 15º da Lei de Descentralização, é por mim considerado como um dos mais graves atentados aos ideais republicanos, para a área da cultura e dos museus, de que há memória em Portugal.

I – O erro histórico.


Desde logo porque estas entidades museológicas foram criadas pelos Governos da 1ª República (entre 1912 e 1924) para se constituírem como um conjunto de instituições culturais significativas, tanto quanto possível localizadas no todo do território nacional (entenda-se equilibradamente distribuídas pelas regiões portuguesas que, no seu conjunto, dão/dariam corpo e expressão ao sentido identitário nacional), de uma forma estruturada e que se pretendia exemplar, enquanto símbolos maiores do nosso património artístico e histórico. Tudo resultando em somatório lógico de parcelas do que de melhor se produziu e coleccionou ao longo dos tempos, em cada região do país (daí a designação de museus regionais para muitos deles, no início e desenvolvimento deste processo constitutivo, à falta de melhor designação).

A ideia era a de criar infra-estruturas que validassem uma política global para a salvaguarda e valorização do património cultural do país (e até para a “educação” do povo), o que só se conseguiria alcançar mantendo-as na esfera da administração central, num modelo orgânico e funcional de rede, como hoje diríamos, para assim dar substância a uma tessitura de museus portugueses, à escala do território nacional, e submetidos a uma hierarquia operativa que ajudasse ao cumprimento missionário que lhes cabe realizar.

É claro que poderíamos aprofundar todo o processo histórico que levou à criação de 13 museus no período acima considerado, e entre todos eles, 7 possuírem estatuto ligado à administração central (Aveiro, Évora, Faro, Bragança, Viseu, Lamego e Tomar), 2 ficarem sob a responsabilidade tutelar das respectivas Juntas Gerais do Distrito (Beja e Vila Real), e 4 pelas respectivas Câmara Municipais (Leiria, Braga, Abrantes e Chaves). Não o faremos aqui, porque não cabe neste breve considerando tal abordagem mas sublinharia desde já a clarividência dos então responsáveis públicos, que souberam estruturar as tutelas destas unidades museológicas muito em função da qualidade intrínseca dos seus acervos, sem prejuízo de outros fenómenos de natureza mais política que contribuíram para esta estratificação institucional. Ficará para outra altura, havendo necessidade de maior clarificação. 


II – Descentralização ou demissão?


No meu entender, uma verdadeira descentralização seria conseguida através da disponibilização, às equipas directivas e de pessoal de cada museu, de um conjunto de competências e capacidades gestionárias que lhes permitissem actuar em conformidade com as realidades e necessidades específicas de cada um, mas sempre em respeito e em articulação com as políticas culturais nacionais que fossem estabelecidas para o sector, e sempre também submetido à orientação superior de quem tem mandato democrático para, a cada momento, definir as linhas gerais das políticas culturais.

Assim sendo, considero que está muito mais próximo do conceito de uma verdadeira descentralização a recente proposta de autonomia dos museus, monumentos, palácios e sítios (com todos os defeitos que já enunciei num outro texto), que este lacónico articulado legal, que ainda por cima nos remete para acordos com cada município a propósito da  possibilidade de transferir as competências gestionárias dos museus em causa. Parece querer dizer que, se der, deu, se não der, paciência... que logo mais se verá como vai ser, o que levanta questões até de natureza constitucional, como alguns senhores deputados (Paulo Trigo Pereira, independente pelo PS, entre outros) já levantaram, e muito bem.

Ora, em modesto entender, isto não é descentralização. É demissão do Estado, pura e simples, ao alijar as suas mais nobres e elevadas funções constitucionais de zelar pelo património artístico e histórico nacional, transferindo-as para a esfera tutelar municipal, o que reduzirá drasticamente o alcance da missão de cada entidade transferida, por muito que nos garantam que não. Desde logo porque cria desequilíbrios muito maiores do que os existentes, já que cada museu transferido passará a depender mais da boa ou má vontade e predisposição natural dos responsáveis autárquicos e das suas agendas de política local, bem como da capacidade financeira da autarquia em causa. E sabemos o quão diversa é a realidade financeira, e de sensibilidade para as “coisas da cultura”, das nossas autarquias... É claro que argumentarão sempre com o acompanhamento da transferência com um envelope financeiro adequado à realidade museológica em causa, e o estabelecimento de regras específicas, devidamente contratualizadas, para zelar pelas boas práticas museológicas das entidades transferidas. Mas isso é completamente enganoso e erróneo, porque apenas poderá ter força legal durante a vigência do mandato político das partes contratantes, já que a partir daí a autonomia democrática dos órgãos de soberania não possui mecanismos impositivos capazes de contrariar o livre arbítrio e poder decisório da autarquia, em matéria de gestão dos seus próprios recursos e equipamentos, como passariam (e passam) a ser estes museus. E ainda bem que assim é, senão estaríamos a condicionar a liberdade democrática do poder local, e isso seria péssimo para o regime.

Portanto, fazer depender dos municípios os valores culturais e patrimoniais que são de inequívoca importância nacional, deixando-os sujeitos a uma agenda cultural obrigatoriamente localizada (por interesses que a própria definição legal sufraga, em respeito pela independência e não ingerência dos diferentes órgãos de soberania) num qualquer território concelhio, é um caminho ínvio que dificilmente subscreverei.

Depois, porque as próprias colecções, sendo de âmbito e valia nacional, passam a ser geridas por entidade políticas cuja visão missionária se concentra totalmente na área geográfica que serve, sem prejuízo de existirem autarquias que sabem ultrapassar essa visão paroquial do património que possuem no seu território e imprimem dinâmicas supra municipais aos seus equipamentos culturais, e em particular aos museológicos. São os raros, raríssimos, exemplos de excepção que apenas me confirmam a regra...

Devo aqui ressalvar que não considero apenas os museus com designação “Nacional” como sendo os únicos detentores de acervos com valia homónima. Museus como o de Lamego e o de Aveiro, para dar apenas dois exemplos paradigmáticos, possuem acervos de incontornável valia nacional cuja passagem para a gestão autárquica, eventual ou real, constitui inquestionável empobrecimento estatutário.


III – A César o que é de César...


Temos de ser claros e incisivos nesta matéria – os museus municipais são insubstituíveis e fundamentais para uma harmoniosa organização do panorama museológico nacional. Importantíssimos instrumentos de cultura, ao serviço das comunidades onde estão inseridos, e dos públicos em geral, alguns mesmo reconhecidos internacionalmente, quer pelos conteúdos que expõem, quer pelas boas práticas museológicas que desenvolvem; mas não podem nem devem, no entanto, ser confundidos nos respectivos papéis com os outros museus, nomeadamente com os museus que possuem acervos supra municipais, uma vez que cada tipologia cumpre (ou deveria cumprir) a especial missão e desiderato para que foram criados. Aos municípios o que é dos municípios e à administração central o que dela deve ser, cada qual mantendo e respeitando as suas origens históricas tutelares, para cabal cumprimento das suas obrigações institucionais, e até mesmo constitucionais.

É para mim muito claro que os museus do Estado devem sempre, e em todas as circunstâncias, manter relações institucionais, e até mesmo programáticas, com os municípios onde estão localizados, do mesmo modo que aos museus municipais se espera e deseja uma boa articulação com os serviços e estruturas públicas de serviço cultural central, de que o projecto da Rede Portuguesa de Museus deveria ser pólo aglutinador de referência.

Significa isto que os museus criados pelos municípios cumprem o desiderato para que foram criados, do mesmo modo que os museus criados por razões diversas se devem manter nas respectivas esferas tutelares, porque só assim são capazes, todos, de responder positivamente perante as suas obrigações de serviço público cultural. Naturalmente que aqui me estou a referir aos museus tutelados por entidades da esfera pública, e não outras.

A cada um, consoante a natureza histórica, fundacional, patrimonial e simbólica que esteve na sua constituição e criação, se deve dar a relevância e importância devidas, sejam museus tutelados pelas autarquias, sejam tutelados pelo Governo da República. O que não se pode, ou não se deve fazer, é adulterar profundamente o seu sentido primordial de existência, a pretexto de uma qualquer necessidade conjuntural, por mais exigentes que sejam essas necessidades e, com tais argumentos, subverter definitiva e irremediavelmente o primordial papel “ideológico” para e porque foram criados.

IV – À espera da regionalização.


É claro que num mundo quase perfeito de um Portugal regionalizado, teríamos os museus públicos portugueses estruturados em nacionais, regionais e locais, cada qual sob a esfera tutelar das administrações homólogas, numa hierarquia de valor em função da qualidade dos acervos e da vocação específica de cada instituição. Não havendo regionalização do país, o pior que poderia ser agora feito, mesmo para os museus públicos passíveis de serem transferidos para a esfera regional, é transferi-los acriticamente para a esfera local, como se ambos os níveis de administração fossem, mais coisa menos coisa, o mesmo. Mas não são, e não faz qualquer sentido fazê-lo, porque isso retira estatuto ao museu e, pior que isso, deturpa totalmente o sentido missionário original que possuía até ao momento da transferência.

Simbolicamente, produz o efeito geral (que até pode ser aparente, mas é sempre desastroso), de desqualificação do próprio acervo, por enquadramento mental de que quanto mais elevado for o estatuto da entidade, mais importante é o seu valor e, por conseguinte, mais qualificado é o território e a comunidade que orgulhosamente o possui (e, confesso, não considero que seja mau pensar que assim se pense).

Também por estas razões não faz qualquer sentido o articulado legal da alínea precedente, que considera ser da competência dos órgãos municipais a gestão, valorização e conservação do património cultural que, sendo classificado, se considere de âmbito local porque, das duas uma: ou está classificado como sendo de interesse local e a administração central já não tem qualquer jurisdição sobre ele (no aspecto específico da gestão, que aqui nos interessa relevar), ou até pode ter manifesto interesse internacional, que nunca deixará de ser considerado também de âmbito local. Então, isto só pode significar que todo o património cultural classificado passa a ser passível de, a qualquer momento, poder ser transferido para a tutela gestionária do município onde ele se encontra localizado.

Sou contra esta generalização acrítica e abstracta, uma vez que não existirá nenhum testemunho patrimonial que, sendo de interesse nacional, não deixe de ser considerado de âmbito local, porque nesta construção não há razão de exclusão do nível superior para o inferior, mas sim de completa e total inclusão – o património que está classificado nacionalmente, seja ele qual for, é sempre também de âmbito local! 

V – Conclusão.


Por isso sou, e serei sempre, até que me apresentem provas substantivas e poderosas em contrário, contra a transferência tutelar dos museus da República para os Municípios. Mas provas essas que não sejam apenas pretexto mal disfarçado para alijar responsabilidades financeiras da administração central, que assim vai conseguir manter os melhores recursos na receita, para os dedicar apenas à meia dúzia de entidades patrimoniais que possuam estatuto “superior”... prejudicando nitidamente o sentido da solidariedade institucional (e geográfica), ao arrepio das mais elementares normas da gestão dos bens públicos do Estado, independentemente dos lugares onde os mesmos se encontram localizados, e que nos deveriam obrigar a distribuir solidariamente os recursos financeiros pelos museus que mais deles têm necessidade, não por terem menos visitantes, não por terem menos receitas, não por terem menos capacidade de captar mecenas, não por estarem localizados na província, não por serem os menos empresarialmente apetecidos, mas sim porque fazem parte integrante do Património Cultural Português e contribuem para a afirmação identitária de um Portugal uno, coeso e territorialmente solidário, como deve ser num País democrático, moderno e solidário.

Em suma, acho um enorme erro político, conceptual e até mesmo estratégico, as transferências que já foram feitas (Museus de Aveiro, da Guarda e de Castelo Branco), das que se preparam para ser feitas (e que me escuso aqui de nomear) e do “elitismo serôdio” subjacente que sobrará como indevido benefício para as instituições museológicas que se vão manter na esfera tutelar da administração central.

Tanto se critica a desertificação do interior que até começamos a acreditar que alguma coisa em concreto vai ser feita, e depois assistimos à feitura do exactamente contrário ao que deve ser feito para travar tal desertificação – extinguimos serviços e desqualificamos instituições em nome de umas irrelevantes e absolutamente negligenciáveis poupanças que, se analisarmos correctamente, estou em crer que nem nisso resultarão…!

Como apontamento final, sublinharia que as reservas enunciadas pelo Senhor Presidente da República são muito bem vindas, dada a pertinência das mesmas, e que estão muito bem explanadas em quatro pontos da nota divulgada no site da Presidência. Mas tenho para mim que, se as dúvidas que eu tenho relativas ao sector da cultura forem idênticas ou muito próximas às que outros possam ter nos respectivos sectores de actividade pública, então melhor teria sido que esta Lei fosse, pura e simplesmente, vetada.

Agostinho Ribeiro