A proposta de Lei-Quadro da Descentralização para a área da Cultura constitui mais um preocupante
retrocesso conceptual, histórico e técnico, em matéria de salvaguarda e
valorização do Património Cultural de Portugal, que nos deveria desassossegar a
todos, independentemente dos nossos alinhamentos ideológicos e/ou partidários.
De facto, o que aqui está em causa é uma questão primordial de conceito e não
um mero modelo de gestão que apenas se poderia entender como uma, entre tantas
outras, forma expedita de aligeirar responsabilidades fundamentais do próprio
regime, como tentarei abaixo descrever.
Como nota prévia, aponto a
certeza de que todos os meus leitores sabem perfeitamente que sempre assim
pensei. Na verdade, sempre defendi o anterior modelo de gestão pública do
património, (anterior às alterações que se iniciaram em 2011), que certamente carecia de
melhorias no plano das responsabilidades directivas, em termos de autonomias técnicas, humanas e financeiras, de
regulamentos claros e precisos para normalização de procedimentos e do
aprofundamento das redes nas suas componentes operativas, mas não o seu
abandono e muito menos a sua reversão para um modelo similar ao dos anos sessenta do século passado. Não estou portanto sujeito a qualquer
outra razão que não seja a que sempre me orientou, no entendimento do papel que
o Estado deve ter e manter na valorização e salvaguarda do nosso património
cultural. Há muitos anos que assim penso, e ajo em conformidade com este meu
pensamento.
Vejamos, pois, as principais
razões que me levam a este escrito:
1ª – A proposta exibe excessivas
confusões e contradições conceptuais, não se percebendo nela qualquer linha
definidora de uma política nacional concertada, equilibrada e harmoniosa, que
permita antever a beneficiação e valorização do nosso património cultural, que
penso dever ser a preocupação principal de todos nós e, em primeira mão, dos
próprios promotores da legislação agora apresentada.
Começa logo por não esclarecer
devidamente o que se entende por “património cultural que, sendo classificado,
se considere de âmbito local” pelo menos nos termos em que nos permita compreender
onde e em que circunstâncias se ultrapassa tal âmbito (cfr. Art.2º). A tentativa expressa no nº 2 do artigo
4º, ao pretender esclarecer tal dúvida, explica-nos que se consideram de âmbito
local “os imóveis classificados do Estado com significado predominante para o
respetivo município” (?), signifique isto o que significar... para logo de
seguida, e contraditoriamente, se transferirem “automaticamente” 72 imóveis que
são, precisamente, de manifesto e inequívoco interesse nacional, pelo menos no
modelo conceptual e legal vigente! Repare-se bem: 47 dos imóveis classificados
são Monumentos Nacionais, 18 Imóveis são de Interesse Público e 2 são Sítios de
Interesse Público. Quase todos, portanto, de interesse e importância
manifestamente nacionais! (cfr. nº2 do art. 6º).
É claro que qualquer um destes
imóveis não pode deixar de ter "significado predominante" para o município onde o
mesmo está localizado, porque não estou a ver, sinceramente, onde é que um imóvel de valor nacional não tenha significado predominante a nível local, pelo que esta construção justificativa é tão desprovida
de sentido que até me questiono mesmo se não terá sido resultado de um qualquer arreliador lapso.
Porém, esta atitude destrói, de
uma só e impiedosa penada, o trabalho secular que a República desenvolveu até
aos nossos dias para dotar Portugal de uma classificação dignificadora do mais
relevante património edificado nacional, que fosse entendido à escala do País
como conjunto fundamental e imprescindível para a construção da nossa
identidade colectiva, enquanto Povo.
Se andamos há mais de um século a
definir estes “bens patrimoniais” como de interesse público nacional, é
obrigação dos proponentes desclassificar primeiro todos estes imóveis, e só
depois assumir estas transferências de tutela gestionária para as autarquias,
resolvida que fique a questão de os não considerarem de interesse nacional, já
que não se lhes reconhece estatuto suficiente para se manterem na esfera
tutelar da Administração Central, como irá acontecer, por exemplo e
contraditoriamente, a outros bens nacionais do património português, como é o
caso dos Museus Nacionais.
E não deixa de ser curioso que é
precisamente quem mais se diz orgulhar da sua matriz republicana que se prepara
agora para reverter alguns dos símbolos maiores da própria República, por razões que
temos o dever de considerar, de forma inconcebível e até mesmo contraditória,
ideológicas. O conjunto patrimonial e museológico que foi sendo paulatinamente
construído, numa lógica de equilibrada, justa e necessária representatividade
do todo nacional, obrigatoriamente resultando do somatório das partes mais
emblemáticas e simbólicas que cada território específico soube produzir a favor
da nossa identidade cultural, passa agora a ficar gestionariamente disperso, ao
sabor e livre arbítrio de lógicas locais que, por muito bondosas que sejam,
jamais poderão deixar de ser o que são – locais!
2ª - Em linha com esta inadequada
confusão conceptual, é-nos ainda apresentada a proposta de transferência dos
museus “não nacionais” do Estado, já que se propõe passar para as câmaras
municipais a “gestão, valorização e conservação dos museus que não sejam museus
nacionais” (cfr. nº 3 do art. 4º), também aqui não se percebendo, em bom rigor,
o que pretende dizer o legislador com tal asserção... Isto porque, no estado de
completa anarquia conceptual em que nos encontramos atualmente, conviria
explicitar claramente quais os museus que entende o legislador não serem
nacionais: são todos os que não possuem a designação específica de “Nacional”?
Incluímos aqui também os que possuem relevantíssimos Tesouros Nacionais nos
seus acervos? Ou serão ainda mais alguns, mesmo todos os que não possuindo nem
uma coisa nem outra possuem contudo acervos de referência e importância
reconhecidamente supramunicipais?
É que nesta proposta de lei
passam, desde já e automaticamente, 5 museus que até há bem pouco tempo estavam
sob tutela da Administração Central (cfr. nº2 do artº. 6º), sem nos ser dada
qualquer explicação lógica, devidamente fundamentada, sobre as razões que levam
a ser estes, e não também todos os outros, os museus transferidos de tutela
gestionária.
Recordamos que as transferências
já efectuadas para as tutelas autárquicas, e que são, aliás, a maior parte dos
museus agora designados, resultaram de critérios nunca devidamente submetidos à
reflexão pública, e concretizaram-se ao arrepio de quaisquer fundamentos
lógicos que as admitissem claramente benéficas para os museus destinatários,
carreando a ideia difusa de
transferências mais baseada em interesses exógenos à causa museológica do que
em função dos interesses próprios dos museus.
E se forem só estes 5 museus a
transitarem de tutela, que sentido faz então o conteúdo ínsito na alínea b) do
artigo 2º da Proposta? Será que, por via desta construção legal, passam todos
os restantes museus a “Museus Nacionais”, justificando-se assim (e resolvendo)
a contradição desta proposta de diploma legal que estabelece a transferência de
todos os museus não nacionais, para logo de seguida os excluir a todos, fora os
5 nomeados no Anexo II? Ou será que os restantes museus não nacionais apenas
ficam numa espécie de “limbo”, à espera de melhores dias, ou seja, à espera que
autarcas mais aventureiros e voluntariosos se decidam assumir as
responsabilidades que não estão a ser assumidas por quem tinha a obrigação
constitucional de o fazer, numa perigosa e nada transparente estratégia de
médio prazo para terminar de vez com o ideal republicano de uma rede de museus
do Estado, equilibradamente distribuídos pelo todo do território nacional, que
pudessem constituir exemplos e âncoras para as restantes tipologias
museológicas instaladas nos respectivos territórios?
A desertificação do País, em
estruturas emblemáticas e simbólicas do Estado que afirmem a integralidade do
todo nacional, também aqui na Cultura a ser activamente promovida por quem deveria ter a
preocupação maior e primeira de a evitar...!
3ª - Acrescente-se que este
processo não nos parece ser de verdadeira descentralização, como refere o seu
título. Parece antes um processo ardiloso de transferência de competências que resulta de uma mera demissão do Governo
perante as suas obrigações legais, optando pela via mais fácil de transferir
tais responsabilidades para as autarquias, com a agravante de sublinhar que
serão acompanhadas dos respectivos envelopes financeiros, como se isso
correspondesse a uma garantia de estabilidade orçamental para assegurar uma
correcta gestão autárquica dos bens públicos de valor nacional...
Falacioso, como sabemos, porque
os irrisórios meios financeiros que actualmente estão alocados a estes bens
(absolutamente negligenciáveis no que respeita aos bens imóveis classificados e
dramaticamente suborçamentados no que respeita aos museus) apenas garantirão
alguma tranquilidade aos bens que passarem para a gestão de municípios
exemplarmente saudáveis, do ponto de vista financeiro, ficando nós de apurarmos
em que circunstâncias pode o Governo garantir que cada Câmara Municipal cumpra
as suas novas responsabilidades, ad
aeternum, sem esbarrar no respeito que deve pela autonomia do próprio poder
local.
4ª - Esta confusão que tem vindo
a ser lançada, de que se trata de um bondoso e tão necessário processo de
descentralização, tem ainda o enorme inconveniente de não respeitar o histórico
dos bens transferidos, nem ajudar à melhor percepção do que é uma verdadeira
descentralização do Estado. Esta deveria passar por um processo adequado, e legalmente
sufragado, de Regionalização, e não de mera transferência de competências que,
no caso sectorial da cultura, (e em especial do património cultural),
facilmente se pode entender como mera forma, expedita ou nem por isso, de
demissão do Estado. Este, para
corresponder às exigências e anseios de uma pretensa elite cultural (apenas uma
mão cheia de prebendados, sempre respaldados nas confortáveis costas dos
decisores políticos), preferem a comodidade da capital e os holofotes
permanentes focalizados nos bens culturais mais mediáticos e turisticamente
mais apetecíveis, do que essa complexa e difícil tarefa que se chama “serviço
público”, e que é a de saber distribuir equitativamente, e em função de
critérios sólidos, transparentes e razoáveis, as sempre frágeis
disponibilidades financeiras para a gestão do nosso património móvel e imóvel
em todo e para todo o território nacional!
5ª - De notar ainda que todas as
competências a atribuir às autarquias locais (cfr. artigo 5º), mais não são que
as responsabilidades que, directa ou indirectamente, já se encontram atribuídas
às Câmaras Municipais para os bens de manifesto interesse municipal,
tratando-se aqui apenas de validar tais responsabilidades em bens de interesse
supramunicipal, mas de uma forma que a todos nos deveria parecer absolutamente
ínvia, em especial aos que tanto se reclamam de lídimos herdeiros de um belo
conjunto de princípios e valores da República, que não caducaram nos tempos
modernos, porque são simbolicamente fundamentais para a sustentabilidade e
perenidade do próprio regime republicano.
Já escrevi algures que é
impossível, a todos os títulos, estabelecer políticas de carácter nacional sem
possuir os instrumentos operatórios que as permitam executar, o que significa
que o Estado deixa de poder actuar em amplos sectores do património cultural
nacional, uma vez que deixa de possuir a tutela directa dos mesmos, e o
respeito pela autonomia do poder local não pode ser ultrapassada com o
estabelecimento de múltiplas e acrescidas regras a impor a este poder.
E as contradições, até
metodológicas, continuam, porque se tudo tiver que continuar a ser submetido à
apreciação dos organismos centrais ou desconcentrados da Administração Pública,
como parece poder inferir-se pela leitura da alínea c) do artigo 5º da
Proposta, então podemos nós perguntar qual a razão de estarmos a complicar
procedimentos (por acrescento de um nível intermédio de burocracia e de custos para o erário público), e não
ficamos, pura e simplesmente, como estamos actualmente?
Bem sabemos todos que estamos
mal, mas é meu modesto entender que o caminho a seguir é, precisamente, o
oposto deste que agora nos é proposto, dignificando as nossas estruturas
patrimoniais, conferindo-lhes maior autonomia e responsabilidade gestionária,
dotando-as de meios técnicos, humanos e financeiros adequados à enorme
responsabilidade que têm, numa lógica nacional para os bens de interesse
nacional, regional para os bens de interesse regional e local para os bens de
interesse local, todos integrando uma rede do património nacional que faça convergir
para benefício comum o que de melhor existe em cada uma das unidades que
compõem este todo.
Mas tudo isto sem confusões de
conceitos, oportunismos financeiros ou obscuridade de intenções, sem misturar
lógicas locais a gerirem bens nacionais e vice-versa, antes estruturando os
diversos níveis através de um sistema de rede que se perceba bem de desejável
complementaridade, e jamais de usurpação ou alienação indevida de
responsabilidades.
6ª - Como também sempre defendi,
a Regionalização é uma premente necessidade para Portugal, porque precisamos
urgentemente de começar a resolver os graves problemas e desequilíbrios
estruturais que afectam, sobretudo, as regiões mais desfavorecidas do País. Mas
entendamo-nos: aos problemas e às matérias que englobam e dizem respeito ao
todo nacional, deve sempre prevalecer a lógica gestionária do Governo Central,
e às matérias que dizem respeito aos territórios de cada região a sua gestão deve ser entregue à tutela de cada nova entidade regional, do mesmo modo que a cada uma das
autarquias se deve manter e reforçar as respectivas competências para o respectivo território municipal. Constitui, portanto, e em modesto entender, uma grave
subversão deste princípio afectar tutelarmente áreas de serviço público, cujo
interesse é reconhecidamente nacional, às regiões ou às autarquias, dado que só
pode cumprir cabalmente as suas nobres funções numa lógica integrada, a nível
global, e jamais de outra qualquer forma que não seja absolutamente
complementar e subsidiária ao papel do primeiro e inalienável responsável - o
Governo de Portugal.
Por estas razões, sumariamente
apresentadas, e ainda por questões de natureza técnica, profissional e
deontológica (aqui num plano já mais profissional que não cabe neste contexto),
seria muito importante que este Projecto de Decreto-Lei Sectorial, para a
Cultura, não fosse viabilizado, porquanto ele representará um gravíssimo
retrocesso ao enquadramento legal que, para esta área, Portugal se pode ainda
orgulhar de possuir (as Leis Quadro do Património Cultural e dos Museus).
Agostinho Ribeiro