quarta-feira, 25 de abril de 2012

O novo rumo dos museus em Portugal






“Consumatum est”

Em resultado do que vinha sendo paulatinamente preparado nos últimos anos, as estruturas museológicas deste país estão agora a sofrer alterações importantes, tanto na forma como na substância, publicamente assumidas com a nova lei orgânica da Direcção Geral do Património Cultural e das restantes direcções regionais de cultura.
A minha percepção sobre estas mudanças pode sintetizar-se nos seguintes pontos:

1º - Nas matérias da forma, cuja carga simbólica é sempre a mais importante a considerar, assume-se como opção política de fundo, segundo as próprias afirmações do Director Geral do Património Cultural, a manutenção dos museus “nacionais” e dos palácios na dependência directa dos serviços centrais da Secretaria de Estado da Cultura (na nova DGPC), passando todos os “outros” museus para a tutela das diversas direcções regionais, os designados serviços periféricos da mesma Secretaria de Estado, em função da localização geográfica de cada um dos restantes museus.
Duas incompreensíveis e contraditórias excepções demonstram, desde logo, a inconsistência do critério anunciado – o Museu Grão Vasco não possui a designação de “nacional” mas mantém-se na tutela do serviço central, e o Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães, estando incluído na tipologia dos “palácios”, passa para a tutela do serviço periférico da região norte.
Faria todo o sentido que fosse explicado aos portugueses, em detalhe e por quem de direito, as razões de ser de tais excepções, que têm obrigatoriamente que ser muito fortes e inquestionáveis, porque, se o não forem, põem em causa a seriedade deste processo...

2º - Percebemos, assim, que este Governo estabelece a existência de duas “classes” de museus estatais – os nacionais e os “outros” – não se sabendo muito bem como haveremos de designar estes últimos, porque nos “outros” museus existem colecções de relevância nacional e projecção internacional, em determinados casos tão ou mais relevantes do que os contidos em alguns dos chamados museus “nacionais”, o que não permite nem admite que se designem tais museus como “regionais” (e muito menos “locais”), em nome da mesma seriedade e do rigor técnico e científico que abona a favor dos respectivos acervos, talvez o primeiro e um dos mais importantes fundamentos que deveriam ter presidido às alterações modelares, o que não foi, seguramente, o que agora aconteceu...
Em termos geográficos, os museus “nacionais” estão todos situados em Lisboa, à excepção de dois solitários e emblemáticos casos, Machado de Castro e Soares dos Reis, um em Coimbra e o outro no Porto, respectivamente. Sem esquecer o imoral caso de Viseu (imoral à luz dos critérios anunciados), claro!
Tudo o resto parece ser um aborrecido “incómodo” de paisagem provinciana, constituindo este modelo um nítido retrocesso ao processo de afirmação de uma rede museológica nacional, conforme está concebida na Lei Quadro dos Museus Portugueses, Lei essa que foi aprovada por unanimidade na Assembleia da República, e que agora parece constituir “letra morta” na construção deste novo figurino museal.
É o novo ciclo assumido contra um processo iniciado na 1ª República e que todos os museológos portugueses acarinharam e defenderam, de uma forma ou de outra, até à presente data, extinguindo-se agora por razões que só se podem ligar a um estranho “elitismo”, norteado por secretíssimas e insondáveis motivações, tudo muito incompreensível num Estado democrático e de direito em que se supõe que ainda vivemos.

3º - O argumento de peso a favor deste modelo esgrime-se num hipotético movimento de descentralização dos serviços centrais, em benefício destas entidades museológicas. O que nos faz apontar agora para as matérias da substância, e onde tais argumentos, cuja bondade poderíamos admitir em teoria, esbarram frontalmente com a realidade do modelo proposto, onde cada uma destas entidades passa a não ter, sequer, um orçamento de funcionamento próprio, e as suas chefias deixam de existir em algumas delas, situação que se nos afigura ilegal, à luz das disposições da Lei Quadro já referida.
Afirmar, portanto, que um museu que passa de uma tutela central para uma tutela periférica será mais beneficiado e prestigiado nas suas funções e papel culturais (e que, para além disso, deixa de ter orçamento próprio e não é dotado de qualquer direcção que o gira e dinamize internamente, ficando totalmente dependente de orientações exteriores à sua própria realidade orgânica e funcional), constitui, no mínimo, uma asserção que nos deixa perplexos (e em todo o caso, um atentado à nossa inteligência), a pedir demonstração adequada.
Sendo tal modelo, no entender dos seus promotores, benéfico para os museus portugueses, não se percebe porque razão, então, foi o mesmo concebido e consumado em total e absoluto segredo, sem qualquer interlocução, consulta ou audição prévias aos profissionais do sector, precisamente ao contrário do que o senhor Secretário de Estado da Cultura afirmou, publicamente e por diversas vezes, que iria suceder a este propósito.

4º - As razões da proximidade aos poderes de decisão, perante um serviço periférico da administração central, ao invés de as tornar mais céleres (as decisões), aumentam e burocratizam todo o processo. Caso paradigmático é o da conservação e restauro dos bens museológicos, cujos processos terão de passar pelas administrações periféricas mas, no final, lá terão que desaguar no antigo Instituto José de Figueiredo, em Lisboa, como sempre sucedeu. E esta não é uma matéria despicienda porque corresponde a um dos pilares fundamentais das funções específicas dos museus, entre outras de não menor relevância, que não deixarão de ser tratadas segundo os mesmos procedimentos anteriormente usados.
A não ser, evidentemente, que as direcções regionais sejam dotadas de generosas verbas e amplos recursos técnicos que as coloque em condições de assumir integralmente, e com qualidade, tais responsabilidades. Mas isso fará disparar a despesa pública no sector, para multiplicar por quatro (tantas quantas as direcções regionais existentes) os recursos financeiros e técnicos que antes estavam contidos numa única entidade central - o ex- IMC.
Oxalá esteja enganado mas, na ausência de um processo que confira uma real e substantiva autonomia gestionária aos museus, incluir tutelas intermédias no sistema é, em modesto entender, burocratizar e complicar ainda mais o que já de si era complexo e de difícil realização.

5º - Mas o mais extraordinário em todo este processo, tanto na forma como na substância, é que em lado algum nos é demonstrado, ainda que por estimativa, que tais alterações irão resultar em ganhos de rentabilidade, eficácia e eficiência para os museus portugueses, isto já para não abordarmos as questões de natureza financeira, onde os ganhos hipoteticamente obtidos com a extinção de alguns (poucos) cargos de direcção (opção que nem no tempo da fome e da guerra foi adoptada pelo Estado Novo) chegarão para compensar os enormes custos decorrentes da implantação no terreno de um corpo técnico e cientificamente capaz de corresponder às necessidades dos museus, no seio das quatro direcções regionais que agora terão os museus sob sua responsabilidade gestionária.
Se é este o caminho para a reforma administrativa, na área da cultura, decorrente da aplicação no terreno, do PREMAC, bem podemos temer que os resultados finais fiquem muito aquém do previsto, porquanto não é, seguramente, a destruição pura e simples de meia dúzia de chefias intermédias, que irão resolver esta magna questão. Não nos podemos esquecer que tais chefias resultam, na sua esmagadora maioria, de comissões de serviço de quadros da administração pública, directa ou indirecta, e que, em termos reais, pouco reduzem aos gastos globais do Estado Português, se reconduzidos às suas funções originais.
Bastaria desonerar os novos serviços dependentes do SEC numa mão cheia de subdirectores, que estão manifestamente a mais e são absolutamente desnecessários, para que se pudessem manter as estruturas no terreno a funcionar devidamente, estas bem mais necessárias e produtivas que aquelas, conforme facilmente se percebe sem precisar de muita demonstração – basta conhecer minimamente a realidade do país... Será que nem as contas foram feitas, ou esta “história” da contenção por causa da crise apenas serve para enganar os incautos e ingénuos da província?

6º - No que respeita à ausência de uma qualquer autonomia orçamental, a regressão vale tanto para os museus que agora são “despromovidos” como para os museus nacionais que se mantêm na tutela dos serviços centrais, sendo mesmo de antever maiores dificuldades para estes que para os “outros”, os tais que no dizer do ex-director do IMC, de má memória, não faziam parte dos museus “mais significativos”, demonstrando assim uma olímpica ignorância sobre a qualidade intrínseca dos acervos museológicos que geriu (mal), respeitantes aos tais museus que, por oposição àqueles, seriam os “menos significativos”.
De um golpe só, faz-se agora de conta que a Lei Quadro dos Museus não existe, aniquila-se a Rede Portuguesa de Museus (que não se sabe muito bem no que se irá transformar, se é que se vai transformar em alguma coisa) e faz-se tábua rasa de um moroso processo de afirmação dos museus portugueses que tinha vindo a ser construído ao longo das últimas duas décadas, a partir da constituição do saudoso Instituto Português de Museus.
Tudo, portanto, na maior das ligeirezas e desprezo pelo “histórico” dos museus, para não falarmos das ilegalidades consentidas, a demonstrar um profundo desdém, ou talvez pior, uma gritante ignorância sobre a realidade e as necessidades culturais da sociedade portuguesa que (sobre)vive para além de Lisboa.

Tendo eu manifestado publicamente, já no decorrer da gestão do anterior governo, as maiores dúvidas e preocupações sobre a bondade do rumo que se estava a traçar para os museus portugueses, e olhando então para os programas eleitorais de todos os partidos políticos, jamais me seria permitido admitir que tal rumo iria ser enfaticamente seguido e, em boa verdade, aprofundado para níveis que ditam o aniquilamento dos museus, enquanto entidades de cultura minimamente autónomas e independentes, fazendo-nos recear pelo pior dos destinos para os museus portugueses.
Um aspecto porém deve ser realçado nestas transferências tutelares. É sabido que as direcções regionais de cultura possuem bons quadros no que diz respeito aos processos de classificação e de requalificação do património edificado, fruto da construção de um “corpus” técnico ligado a esses sectores, por serem próprios das funções e obrigações do ex-IGESPAR, e que muito podem contribuir para a boa conclusão dos diversos processos de obra, em curso ou a iniciar, em alguns museus estatais.
Mas manda a verdade que se diga que este apoio e colaboração já existia na vigência do modelo anterior, não fazendo sentido algum “destruir” agora as estruturas de apoio museológico, em nome de uma rentabilização não comprovada, e que apenas parece basear-se num preocupante e grosseiro equívoco – o de considerar que os museus e os monumentos são estruturas idênticas e, como tal, podendo ser ambas geridas da mesma maneira.
Mas não são, e o tempo se encarregará de nos obrigar a (re)pensar os museus, (re)colocando o seu papel central de promotores vivos de cultura no lugar estatutário e tutelar que merece e tem direito, mas que agora, infelizmente, perdeu!
Resta-nos esperar apenas que esta seja uma fase meramente passageira...

Agostinho Ribeiro