sábado, 14 de outubro de 2017

Da contínua arbitrariedade de alguns decisores públicos




Ainda a propósito das renovações (ou não) das comissões de serviço dos dirigentes intermédios da administração pública em alguns setores da cultura (e apenas em alguns, que não em todos, o que nos prova bem das arbitrariedades que estão a ser cometidas), convém esclarecer que não se percebem as razões de quem pretende iludir esta questão (e que a tutela deveria considerar gravíssimas em vez de pactuar com elas), levantando dúvidas genéricas e difusas ao que se está a passar, a partir de pretensas boas práticas nunca devidamente explicitadas.

Vou tentar sintetizar historicamente a questão, para finalizar com a minha opinião sobre a mesma:

1 – As renovações automáticas dos dirigentes intermédios da administração pública estavam consignadas no nº 2 do artigo 4º do Decreto-lei nº 191-F/79, de 26 de junho, e vigorou no nosso sistema administrativo durante cerca de 10 anos. Segundo este diploma legal a renovação era automática, sem mais procedimentos burocráticos se até 30 dias antes do seu termo a Administração ou o próprio interessado não manifestassem expressamente a intenção de a fazer cessar;

2 – Posteriormente, com o Decreto-lei nº 323/89, de 26 de setembro, a renovação deixou de ser automática porque passou a depender da comunicação expressa do membro do Governo competente, que deveria ser dada até 30 dias antes do termo da respetiva comissão (cfr. nº 3 do artigo 5º deste decreto-lei). Ou seja, desde outubro de 1989 que as renovações das comissões de serviço deixaram de ser automáticas, mas continuaram a depender do livre arbítrio e de um excessivo poder discricionário da tutela;

3 – Com a lei nº 49/99, de 22 de junho, esta situação manteve-se no essencial, alterando-se apenas o prazo obrigatório da comunicação de renovação, que passou de 30 para 90 dias, como estabelecia o nº 3 do artigo 18º deste diploma legal;

4 – Ao longo deste tempo todo começou a perceber-se que tamanho poder discricionário, demasiado arbitrário, não era nada abonatório para a eficácia e o bom nome da administração pública uma vez que as renovações, ou ausência delas, não assentavam em qualquer base meritória relacionada com o desempenho profissional dos titulares, como deve ser num regime republicano assente num Estado Democrático e de Direito. Por esta razão, e antevendo já a Lei nº 10/2004 de 22 de Março (1º SIADAP), publicou-se a Lei nº 2/2004, de 15 de Janeiro, atualmente em vigor, ainda que com algumas alterações posteriores;

5 – Nesta lei estabeleceu-se a obrigatoriedade da “análise circunstanciada do respetivo desempenho e dos resultados obtidos”, tendo “como referência o processo de avaliação do dirigente cessante, assim como do relatório de demonstração das atividades desenvolvidas e dos resultados obtidos” (cfr. nº 2 do artigo 23º da Lei nº 2/2004, de 15 de janeiro) ou seja, estabelecia-se como regra normativa a obrigatoriedade de avaliar o mérito profissional de cada um, a partir da qual o superior hierárquico teria de decidir pela renovação ou abertura de novo concurso público para provimento do respetivo lugar;

6 – Evitavam-se assim, com este importante diploma legal, as eventuais tentações arbitrárias e discricionárias de qualquer organismo das diversas administrações públicas, uma vez que passaram a ser detalhadamente especificadas as circunstâncias e os procedimentos obrigatórios em que a cessação podia ocorrer (cfr. artigo 23º e seguintes do referido diploma, com especial relevância para as alíneas do artigo 5º onde são tipificadas todas as situações possíveis de produzir cessação de funções), ficando vedada a qualquer decisor tutelar a possibilidade de renovar, ou não, em função de critérios generalistas por não estarem tipificados na lei.

Pelo que, hoje em dia, qualquer despacho de não renovação baseado em fundamentações generalistas, mesmo que pretensamente igualitárias (que jamais o poderão ser se não estiverem ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 25º, da Lei nº 2/2004) só pode ser considerado ilegal, na minha opinião, porque desrespeita esta lei, fere princípios consagrados no Código do Procedimento Administrativo, e viola direitos protegidos pela Constituição da República Portuguesa. De sublinhar que para poder ser considerado igualitário fora do articulado acima descrito, teria necessariamente que abranger a totalidade das “administrações públicas” que se regem pela mesma lei nº 2/2004, e isso só pode ser resultado de decisão a nível governamental. E nada disto está a acontecer neste momento.

Que fique registado para memória futura!

Agostinho Ribeiro