O título é, porventura,
excessivo, mas propositadamente assumido pelas suas implicações conceptuais,
que se poderiam resumir a uma simples questão – a cultura deve estar ao serviço
da economia ou, pelo contrário, deve esta estar ao serviço daquela?
Já a este propósito, mas
reduzindo o âmbito temático da equação, discorri há uns dias atrás, numa
comunicação destinada a jovens formandos da área do turismo, na pretensão de se
perceber se os museus (uma “parcela” importante da materialidade da nossa
cultura) estavam ao serviço do turismo (outra “parcela” também importante, mas
agora da economia nacional) ou se, pelo contrário, estava o setor crescente do
turismo ao serviço da cultura. E, em qualquer dos casos, tentar saber como
poderíamos quantificar tais serviços prestados, de cada um para cada outro.
Ora o turismo, sendo um setor ou
domínio (como preferirem) da ciência económica, é também um instrumento de
natureza social, pelas razões que todos conhecemos, inserindo-se num contexto
mais alargado da economia enquanto ciência social, utilizando cada vez mais, a
seu favor, produtos culturais de diversa construção identitária, que
vulgarmente designamos por artes. Resulta claro, portanto, que a cultura tem
estado ao serviço da economia, mesmo quando a economia, despida dessa abstração
teórica dos conceitos e formulações metodológicas de caráter científico, a
chamada “economia real”, na sua aplicabilidade prática, nos parece querer
demonstrar o contrário. Isto porque, por vezes, somos levados a crer que
vultuosos investimentos em setores específicos da área cultural ou patrimonial,
refletem um espirito meramente altruísta, sem cuidarmos de perceber o retorno
que se espera, e em todo o caso se deseja, desses mesmos investimentos. Mais ou
menos distendido no tempo, esse retorno deveria ser sempre esperável, sobretudo
quando a origem do investimento é oriundo de um exercício, supostamente pensado,
de políticas públicas de investimento na área da cultura.
Infelizmente, em Portugal, nem
sempre o exercício é suficientemente refletido, nem o retorno, mesmo que seja
de natureza supra financeira, é sequer equacionado. A evidência maior desta
lamentável ausência, talvez seja, nos dias que correm, o estranho fenómeno que
levou à construção do novo Museu Nacional dos Coches que, em todo o caso, é exemplarmente
representativo do deslumbramento serôdio decorrente da falta de pensamento e de
reflexão consistente sobre estes assuntos do património cultural, na sua
articulação com os recursos financeiros disponíveis, sejam eles intempestivos
ou não.
Mas este, e outros casos
parecidos com este, não devem ser inscritos nas lógicas dos investimentos na
área da cultura onde o retorno se esperava de forma antecipadamente assumida.
Penso mesmo, dadas as diversas valências que enformaram todo este processo que,
simplesmente, não se esperava nada, numa indigência tamanha de política
cultural, que temo bem que se tenha inscrito no quadro da irresponsabilidade com
que são tomadas as decisões arbitrárias de alguns governantes. De facto, nada
aconselharia o uso de dinheiros públicos, provenientes de contrapartidas únicas
do turismo (Casino de Lisboa) na construção de um museu com estas
caraterísticas – mais de 35 milhões de euros investidos na sua edificação, a
que devemos associar custos permanentes de funcionamento que irão custar ao
erário público mais de 3 milhões de euros por ano. Tudo isto feito na maior das
tranquilidades, mesmo depois das entidades mais representativas do setor
museológico, como foi o caso exemplar do ICOM-Portugal, terem alertado para a
total inconsistência e falta de razoabilidade da opção seguida. Qualquer tentativa
de estimar receitas próximas destas colossais despesas, para tentar justificar
o injustificável, só pode ser considerada por nós um duvidoso exercício de sentido
de humor, ou então de pura má-fé…
É claro que se Portugal não pode
ser considerado um bom exemplo nestas práticas relacionais, a partir dos mais
emblemáticos casos que têm acontecido por cá, isso não significa que não
possamos, ao menos, tecer considerações gerais sobre o assunto e admitir que a
Cultura tem estado mesmo ao serviço da Economia, sendo desejável que, em
contrapartida, os setores que mais beneficiam dos serviços ditos culturais,
invistam melhor, e mais, na requalificação do existente e na criação de novos equipamentos
ou eventos, como hoje é moda dizer-se. E digo bem, quando priorizo a qualidade para
o existente, em detrimento da quantidade para o novo, porque me parece que,
antes de irmos mais longe em novos investimentos na área da cultura, precisamos
urgentemente de melhorar os critérios e os modelos de financiamento adequados e
ajustados, destinados aos já existentes. Retomando o caso exemplar acima
descrito, temos o pleno direito de perguntar se fará algum sentido que o Estado
invista algumas dezenas de milhões de euros na construção de raiz de uma
infraestrutura desnecessária, para substituir outra que cumpria bem a sua
função, deixando à míngua dezenas de outras instituições similares que permanentemente
se confrontam com prosaicas necessidades de funcionamento, e cujas resoluções
são sistematicamente adiadas, “por falta de verbas”!? E, de permeio, fazendo
com que uma instituição museológica que até era tendencialmente
autossustentável passe a ser altamente deficitária para as finanças públicas
nacionais.
Em boa verdade, se a economia tem,
em si mesma e do ponto de vista da análise sociológica, associada a ideia da
“necessidade”, em contraponto e justaposição à ideia da “liberdade”, que
carateriza o saber e a prática culturais, como muito bem a definiram Rita
Raposo e João Carlos Graça, em 2004, (Cultura
e economia: Um trajecto de afinidades e oposições electivas, in Actas dos
ateliers do V Congresso da Associação Portuguesa de Sociologia Sociedades Contemporâneas:
Reflexividade e Acção Teorias e Metodologias de Investigação), então não nos
parece que possamos ou devamos colocar a tónica numa relação de subserviência,
por manifesta inexistência de sentido, antes devendo colocá-la numa lógica de
complementaridade, ainda que reconhecendo que faz mais falta à sociedade atual,
conjuntural, uma cultura (teórica e prática) ao serviço da economia, que o
contrário.
Naquela interessante comunicação,
os autores refletem sobre o conceito de cultura que, pela sua “estreita
associação à ideia de liberdade”, se opunha diretamente à ideia de necessidade,
a que as ciências económicas estavam hipotecadas (e ainda estão, ironicamente,
nos tempos de crise que atravessamos), conceito este que só a pós-modernidade transformaria
na ideia de uma fusão “economia-cultura”, aqui admitindo a vivência de um “cume
de auto consciência societária” que, segundo creio, esbateria a oposição e
sublinharia a integração (dos conceitos), altura em que a economia e a cultura andariam
de tal modo ligados que se confundiriam totalmente. Talvez por tudo isto,
estejamos mais próximos, hoje em dia, de uma noção ideal de complementaridade.
Em todo o caso, esta noção ainda tem de amadurecer muito até alcançar a
plenitude de o ser, no concreto das políticas públicas definidas para a cultura
e no pragmatismo dos agentes económicos que nela encontram um instrumento
válido de afirmação e excelência que se não esgote, apenas, na vã glória do
mediatismo momentâneo, que faz de qualquer investimento na cultura um ato
meramente publicitário.
Agostinho Ribeiro
* Publicado no Suplemento Viseu Económico, Jornal do Centro, nº 674, de 13 de março de 2015.
* Publicado no Suplemento Viseu Económico, Jornal do Centro, nº 674, de 13 de março de 2015.