sábado, 21 de março de 2015

Cultura e Património ao serviço da Economia.*



O título é, porventura, excessivo, mas propositadamente assumido pelas suas implicações conceptuais, que se poderiam resumir a uma simples questão – a cultura deve estar ao serviço da economia ou, pelo contrário, deve esta estar ao serviço daquela?

Já a este propósito, mas reduzindo o âmbito temático da equação, discorri há uns dias atrás, numa comunicação destinada a jovens formandos da área do turismo, na pretensão de se perceber se os museus (uma “parcela” importante da materialidade da nossa cultura) estavam ao serviço do turismo (outra “parcela” também importante, mas agora da economia nacional) ou se, pelo contrário, estava o setor crescente do turismo ao serviço da cultura. E, em qualquer dos casos, tentar saber como poderíamos quantificar tais serviços prestados, de cada um para cada outro.

Ora o turismo, sendo um setor ou domínio (como preferirem) da ciência económica, é também um instrumento de natureza social, pelas razões que todos conhecemos, inserindo-se num contexto mais alargado da economia enquanto ciência social, utilizando cada vez mais, a seu favor, produtos culturais de diversa construção identitária, que vulgarmente designamos por artes. Resulta claro, portanto, que a cultura tem estado ao serviço da economia, mesmo quando a economia, despida dessa abstração teórica dos conceitos e formulações metodológicas de caráter científico, a chamada “economia real”, na sua aplicabilidade prática, nos parece querer demonstrar o contrário. Isto porque, por vezes, somos levados a crer que vultuosos investimentos em setores específicos da área cultural ou patrimonial, refletem um espirito meramente altruísta, sem cuidarmos de perceber o retorno que se espera, e em todo o caso se deseja, desses mesmos investimentos. Mais ou menos distendido no tempo, esse retorno deveria ser sempre esperável, sobretudo quando a origem do investimento é oriundo de um exercício, supostamente pensado, de políticas públicas de investimento na área da cultura.

Infelizmente, em Portugal, nem sempre o exercício é suficientemente refletido, nem o retorno, mesmo que seja de natureza supra financeira, é sequer equacionado. A evidência maior desta lamentável ausência, talvez seja, nos dias que correm, o estranho fenómeno que levou à construção do novo Museu Nacional dos Coches que, em todo o caso, é exemplarmente representativo do deslumbramento serôdio decorrente da falta de pensamento e de reflexão consistente sobre estes assuntos do património cultural, na sua articulação com os recursos financeiros disponíveis, sejam eles intempestivos ou não.

Mas este, e outros casos parecidos com este, não devem ser inscritos nas lógicas dos investimentos na área da cultura onde o retorno se esperava de forma antecipadamente assumida. Penso mesmo, dadas as diversas valências que enformaram todo este processo que, simplesmente, não se esperava nada, numa indigência tamanha de política cultural, que temo bem que se tenha inscrito no quadro da irresponsabilidade com que são tomadas as decisões arbitrárias de alguns governantes. De facto, nada aconselharia o uso de dinheiros públicos, provenientes de contrapartidas únicas do turismo (Casino de Lisboa) na construção de um museu com estas caraterísticas – mais de 35 milhões de euros investidos na sua edificação, a que devemos associar custos permanentes de funcionamento que irão custar ao erário público mais de 3 milhões de euros por ano. Tudo isto feito na maior das tranquilidades, mesmo depois das entidades mais representativas do setor museológico, como foi o caso exemplar do ICOM-Portugal, terem alertado para a total inconsistência e falta de razoabilidade da opção seguida. Qualquer tentativa de estimar receitas próximas destas colossais despesas, para tentar justificar o injustificável, só pode ser considerada por nós um duvidoso exercício de sentido de humor, ou então de pura má-fé…

É claro que se Portugal não pode ser considerado um bom exemplo nestas práticas relacionais, a partir dos mais emblemáticos casos que têm acontecido por cá, isso não significa que não possamos, ao menos, tecer considerações gerais sobre o assunto e admitir que a Cultura tem estado mesmo ao serviço da Economia, sendo desejável que, em contrapartida, os setores que mais beneficiam dos serviços ditos culturais, invistam melhor, e mais, na requalificação do existente e na criação de novos equipamentos ou eventos, como hoje é moda dizer-se. E digo bem, quando priorizo a qualidade para o existente, em detrimento da quantidade para o novo, porque me parece que, antes de irmos mais longe em novos investimentos na área da cultura, precisamos urgentemente de melhorar os critérios e os modelos de financiamento adequados e ajustados, destinados aos já existentes. Retomando o caso exemplar acima descrito, temos o pleno direito de perguntar se fará algum sentido que o Estado invista algumas dezenas de milhões de euros na construção de raiz de uma infraestrutura desnecessária, para substituir outra que cumpria bem a sua função, deixando à míngua dezenas de outras instituições similares que permanentemente se confrontam com prosaicas necessidades de funcionamento, e cujas resoluções são sistematicamente adiadas, “por falta de verbas”!? E, de permeio, fazendo com que uma instituição museológica que até era tendencialmente autossustentável passe a ser altamente deficitária para as finanças públicas nacionais.

Em boa verdade, se a economia tem, em si mesma e do ponto de vista da análise sociológica, associada a ideia da “necessidade”, em contraponto e justaposição à ideia da “liberdade”, que carateriza o saber e a prática culturais, como muito bem a definiram Rita Raposo e João Carlos Graça, em 2004, (Cultura e economia: Um trajecto de afinidades e oposições electivas, in Actas dos ateliers do V Congresso da Associação Portuguesa de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Teorias e Metodologias de Investigação), então não nos parece que possamos ou devamos colocar a tónica numa relação de subserviência, por manifesta inexistência de sentido, antes devendo colocá-la numa lógica de complementaridade, ainda que reconhecendo que faz mais falta à sociedade atual, conjuntural, uma cultura (teórica e prática) ao serviço da economia, que o contrário.

Naquela interessante comunicação, os autores refletem sobre o conceito de cultura que, pela sua “estreita associação à ideia de liberdade”, se opunha diretamente à ideia de necessidade, a que as ciências económicas estavam hipotecadas (e ainda estão, ironicamente, nos tempos de crise que atravessamos), conceito este que só a pós-modernidade transformaria na ideia de uma fusão “economia-cultura”, aqui admitindo a vivência de um “cume de auto consciência societária” que, segundo creio, esbateria a oposição e sublinharia a integração (dos conceitos), altura em que a economia e a cultura andariam de tal modo ligados que se confundiriam totalmente. Talvez por tudo isto, estejamos mais próximos, hoje em dia, de uma noção ideal de complementaridade. Em todo o caso, esta noção ainda tem de amadurecer muito até alcançar a plenitude de o ser, no concreto das políticas públicas definidas para a cultura e no pragmatismo dos agentes económicos que nela encontram um instrumento válido de afirmação e excelência que se não esgote, apenas, na vã glória do mediatismo momentâneo, que faz de qualquer investimento na cultura um ato meramente publicitário.

Agostinho Ribeiro

* Publicado no Suplemento Viseu Económico, Jornal do Centro, nº 674, de 13 de março de 2015.